Chegaram finalmente, após mais de um mês de atribuladas diligências, os dois volumes da ficção completa de Guimarães Rosa. Encomendei-os através da Amazon, após aturada comparação de preços na origem e de despesas de transporte. É possível encontrar para a mesma edição diferenças de mais de 200 reais em livrarias brasileiras, e diferenças de mais de 50 reais com o envio. Quando tudo parecia encaminhado e a Amazon me apresentou uma estimativa da data de entrega, eis que os CTT portugueses me informaram que a encomenda estava retida na alfandega. Novas diligências, provas, autorizações para abertura e controlo. Por mais 20 euros, eis que enfim ponho a vista na obra do autor de Grande Sertão: Veredas.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Dores
Foi assim, também, após a queda do muro de Berlim. A nostalgia que por aí vai de um mundo de regras estáveis e conhecidas. A mudança é dolorosa, sem dúvida, e o "realismo político" sempre preferiu a ordem dos impérios e dos autoritarismos à incerteza dos "poderes populares".
sábado, 26 de fevereiro de 2011
De viagem ao Minho, há cem anos. 3 - Até nas taboletas de certas tendas e comércios a reminiscência da emigração é evidente
A vila [Famalicão] é grande e chã de solo, com bastantes casas, como o povinho diz, de tratamento, algumas com vistosos jardins e quintas d'emparrado.
Na architectura das casas ricas mantem-se o typo de palação, cazarão de dois e três andares, que a bisonheria indigena repete desde Lisboa até ás fronteiras norte do paiz.
Toda a gente o tem visto entre as arvores das modernas quintas minhotas, na bandada das ruas ricas de Vianna, Braga e Guimarães. É geralmente um cubo d'alvenaria, macissa, cercado de platibandas de loiça ou d'alguma goteira de zinco que á altura das beiras, monopolisa afectuosamente as aguas pluviaes. Na fachada, ao nivel do primeiro andar, a varanda corrida, larga e com bolas de vidro vermelho e azul, dá a impressão d'uma boca a rir com dentes verdes.
Logo no andar superior e fachadas lateraes, janelas de guilhotina, em fiadas idênticas, testificam o espirito forreta que faz o giro da peça aproveitando os cantos recônditos, e fazendo da symetria geométrica uma espécie d'esthetica popular.
Ao alto, como uma cúpula d'esta jaula de simios, todavia alegre e acolhedora, a clara-boia de vidros amarelos e azues tem no cocurúto um galo ou caçador de zinco, em catavento; quando a não sobrepuja o mastro pára-raios, substituto da poética palma benta que nossas avós cruzavam na janela em tardes de trovões. São em geral pintadas de branco as paredes e portas de janellas, e estas com baguetas e cantos de talha dourada, que é por onde o brazileiro refrange o reflexo metálico dos seus contos; e sobre as trapeiras da casa, o terraço de parreiral com butacas de verga, completa este typo de cómodo ricaço, d'onde uma escada de pedra vem ao quinteiro ou pateo térreo, mui fofo de mato curtido e bosta de boi, onde sobre montitos de pedra arma em sarcófago o espigueiro das maçarocas, e a cortelha dos bácoros pega co'as janelas da cosinha, e mais longe debicam pombos e galinhas por baixo de japoneiras da altura de três homens, em pleno inverno carregadas de milhares de flores maravilhosas.
Nas obras das igrejas, do hospital e escolas publicas, como na construção de todas essas grandes casas moradias, fala a influencia do brazileiro que filantropisou a riqueza desentranhando-a em donativos á terra que o viu partir colono humilde com o saco da roupa e o canudo do passaporte a tiracolo. Em placas votivas e legendas, a cada momento se lê que tal sino, tal relógio, tal escola, tal enfermaria ou tal capela, foram comprados e erguidos pelo generoso donativo de Fulano e Sicrano, negociantes em Pernambuco e no Pará. Até nas taboletas de certas tendas e comércios a reminiscência da emigração é evidente.
O cemitério, como quazi todos os de terra minhota, não tem nada de fúnebre. Grades de ferro, enroscadas de trepadeiras; portas a dentro, sepulturas de flores, contornadas de buxo e herva cheirosa, com a cabeceira d'ardozia pintada a óleo, representando cenotafios, urnas, pilares - outros jazigos mais ricos, de cantaria, em capelitas e cryptas encimadas de lapides e cruzeiros - a igreja ao fundo; logo, a um e outro lado, meandros minúsculos de jardim, que sombream vistas, ailantos, acaccias de bola e não poucas japoneiras de verde admirável. A alameda ou rua central, da porta d'entrada até á capela do fundo, é a mais povoada e de jazigos melhores; e de roda os pássaros, com a ausência de cyprestes, perderam o medo dos mortos, e é com alegria que cantam e saltam pelas ramas, tirando aos caminheiros, mesmo de noite, o coração constrangido, o vágado subterrâneo com que por outros sitios se passa á beira d'algum d'esses terríveis podrideiros.
Na architectura das casas ricas mantem-se o typo de palação, cazarão de dois e três andares, que a bisonheria indigena repete desde Lisboa até ás fronteiras norte do paiz.
Toda a gente o tem visto entre as arvores das modernas quintas minhotas, na bandada das ruas ricas de Vianna, Braga e Guimarães. É geralmente um cubo d'alvenaria, macissa, cercado de platibandas de loiça ou d'alguma goteira de zinco que á altura das beiras, monopolisa afectuosamente as aguas pluviaes. Na fachada, ao nivel do primeiro andar, a varanda corrida, larga e com bolas de vidro vermelho e azul, dá a impressão d'uma boca a rir com dentes verdes.
Logo no andar superior e fachadas lateraes, janelas de guilhotina, em fiadas idênticas, testificam o espirito forreta que faz o giro da peça aproveitando os cantos recônditos, e fazendo da symetria geométrica uma espécie d'esthetica popular.
Ao alto, como uma cúpula d'esta jaula de simios, todavia alegre e acolhedora, a clara-boia de vidros amarelos e azues tem no cocurúto um galo ou caçador de zinco, em catavento; quando a não sobrepuja o mastro pára-raios, substituto da poética palma benta que nossas avós cruzavam na janela em tardes de trovões. São em geral pintadas de branco as paredes e portas de janellas, e estas com baguetas e cantos de talha dourada, que é por onde o brazileiro refrange o reflexo metálico dos seus contos; e sobre as trapeiras da casa, o terraço de parreiral com butacas de verga, completa este typo de cómodo ricaço, d'onde uma escada de pedra vem ao quinteiro ou pateo térreo, mui fofo de mato curtido e bosta de boi, onde sobre montitos de pedra arma em sarcófago o espigueiro das maçarocas, e a cortelha dos bácoros pega co'as janelas da cosinha, e mais longe debicam pombos e galinhas por baixo de japoneiras da altura de três homens, em pleno inverno carregadas de milhares de flores maravilhosas.
Nas obras das igrejas, do hospital e escolas publicas, como na construção de todas essas grandes casas moradias, fala a influencia do brazileiro que filantropisou a riqueza desentranhando-a em donativos á terra que o viu partir colono humilde com o saco da roupa e o canudo do passaporte a tiracolo. Em placas votivas e legendas, a cada momento se lê que tal sino, tal relógio, tal escola, tal enfermaria ou tal capela, foram comprados e erguidos pelo generoso donativo de Fulano e Sicrano, negociantes em Pernambuco e no Pará. Até nas taboletas de certas tendas e comércios a reminiscência da emigração é evidente.
O cemitério, como quazi todos os de terra minhota, não tem nada de fúnebre. Grades de ferro, enroscadas de trepadeiras; portas a dentro, sepulturas de flores, contornadas de buxo e herva cheirosa, com a cabeceira d'ardozia pintada a óleo, representando cenotafios, urnas, pilares - outros jazigos mais ricos, de cantaria, em capelitas e cryptas encimadas de lapides e cruzeiros - a igreja ao fundo; logo, a um e outro lado, meandros minúsculos de jardim, que sombream vistas, ailantos, acaccias de bola e não poucas japoneiras de verde admirável. A alameda ou rua central, da porta d'entrada até á capela do fundo, é a mais povoada e de jazigos melhores; e de roda os pássaros, com a ausência de cyprestes, perderam o medo dos mortos, e é com alegria que cantam e saltam pelas ramas, tirando aos caminheiros, mesmo de noite, o coração constrangido, o vágado subterrâneo com que por outros sitios se passa á beira d'algum d'esses terríveis podrideiros.
Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 78-80.
Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Mala
Em Setembro de 2009, de visita ao atelier de Ana Sobral, deparei-me com esta peça. Apesar das dimensões - relativamente pequenas - atraía o olhar no conjunto dos trabalhos que a ceramista tinha entre mãos. Havia ali uma vaga inspiração Man Ray, num objecto tridimensional que figurava a mulher em sucessivas e inesperadas mulheres. O trabalho de composição e desenho, naquele diálogo que Ana estabelece com a pasta rugosa, o risco e as tintas era muito interessante. Propus-me adquiri-la, mas a autora mal me deixou tocar-lhe.
- Não lha posso ceder - disse. Não estou pronta para me separar dela.
- Se um dia mudar de ideias, lembre-se de mim - retorqui.
Foi preciso quase um ano e meio para que Ana Sobral lhe desse autorização para viajar 250 quilómetros.
- Não lha posso ceder - disse. Não estou pronta para me separar dela.
- Se um dia mudar de ideias, lembre-se de mim - retorqui.
Foi preciso quase um ano e meio para que Ana Sobral lhe desse autorização para viajar 250 quilómetros.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Aves de arribação
No local do costume, hoje às 11h30. Adaptadas a esta cidade de Guimarães sem o som das ondas, as roncas dos faróis, neblinas húmidas, e as cores do mar? Aparentemente. Por quanto tempo?
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
No tempo em que não se ia ao cinema comer pipocas
Eduardo Lourenço escolheu "Deus sabe quanto amei" de Vincente Minnelli, 1958, para falar de cinema na Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide, Famalicão.
O jovem Eduardo, nascido na Guarda em 1923, foi muito novo inoculado com o virus do cinema, na altura em que o sonoro fazia a sua aparição triunfante. Era um tempo em que se ia ao cinema não para comer pipocas mas para espreitar pela janela de um novo mundo - imaginário - e para participar de uma nova sociabilidade.
A invenção do cinema afirmava-se então como a invenção de um novo mundo - disse Eduardo Lourenço. De certa forma, um céu portátil, inventado pelos homens para substituir aquele que estava a ser perdido (nos anos 30).
O jovem Eduardo, nascido na Guarda em 1923, foi muito novo inoculado com o virus do cinema, na altura em que o sonoro fazia a sua aparição triunfante. Era um tempo em que se ia ao cinema não para comer pipocas mas para espreitar pela janela de um novo mundo - imaginário - e para participar de uma nova sociabilidade.
A invenção do cinema afirmava-se então como a invenção de um novo mundo - disse Eduardo Lourenço. De certa forma, um céu portátil, inventado pelos homens para substituir aquele que estava a ser perdido (nos anos 30).
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
domingo, 20 de fevereiro de 2011
sábado, 19 de fevereiro de 2011
Platónico
Manuel Cruz, professor de Filosofia em Barcelona, ganhou um prémio de ensaio com uma obra sobre os filósofos e o amor (Amo, Logo Existo). Extracto de uma entrevista recente.
P. - Woody Allen considera que o único amor verdadeiro é o platónico, o não correspondido, porque esse nunca nos deixa. Concorda?
R. - Sim, de certa forma, na medida em que o amor que não espera resposta não tem prazo de validade. Nesse caso, porém, como não existe o outro, não se cumpre uma das funções essenciais do amor que é o reconhecimento. O outro, o amado, é quem nos devolve a imagem que temos de nós próprios - mas melhorada e transformada. Ninguém nos elogia mais do que quem nos ama, e só quem nos ama descobre as nossas contradições, medos, o nosso verdadeiro ser.
P. - Woody Allen considera que o único amor verdadeiro é o platónico, o não correspondido, porque esse nunca nos deixa. Concorda?
R. - Sim, de certa forma, na medida em que o amor que não espera resposta não tem prazo de validade. Nesse caso, porém, como não existe o outro, não se cumpre uma das funções essenciais do amor que é o reconhecimento. O outro, o amado, é quem nos devolve a imagem que temos de nós próprios - mas melhorada e transformada. Ninguém nos elogia mais do que quem nos ama, e só quem nos ama descobre as nossas contradições, medos, o nosso verdadeiro ser.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
De viagem ao Minho, há cem anos. 2 - A fúria de renovar e reparar produziu no burgo lôbrego de D. Fr. Bartholomeu, tétanos d'asneira
Cortando a monotonia dos prédios, e a estagnação das ruas e dos largos, parochias d'architectura lardacea, capelas frias, abrem sobre a calçada as suas bocas d'adega; massas enormes de granito, clarescuradas de lichens e poeiras, onde nos baixos a humidade põe repasses de salitre, simulando nódoas de gordura. São pelo menos trinta e cinco santuários e cacifos devotos, entre as dez casas de beneficência, as nove ordens e irmandades, os dez conventos e as seis igrejas parochiaes que possue a cidade, e onde entre gralhadas de sinos a toda a hora ha serviços religiosos, particularmente gostados de damas flácidas e homensinhos de passapiolho, já carunchentos de corpo, e não tratando senão de pôr no seguro as almas de chicharro.
Aparte meia dúzia de palacetes recentes, modelados por architectos do Porto, no feitio de theatros de província, todos ou quazi todos os antigos grandes edifícios civis pertencem aos séculos XVII e XVIII, e devem ser obra de canteiros rudes e mestres d'obras macaqueando sem conhecimento do desenho, nem instinctos da graça d'ensemble, palações Luiz XV e Luiz XVI, por encomenda de fidalgos ricos, tão ignorantes e crassos como elles. Não percorri nenhum d'esses cazarões interiormente, e só pela vestidura externa ajuizo obras que como os palácios arcebispal, municipal, e seus congéneres, teem todo o cunho da barbaria lanzuda e do mau gosto. Á uma, a pedra talhavel é n'estes sitios um granito de bago grosso e conglomeração esferulada, mui rijo ao corte, e que facilmente fendilha sob o estylete do canteiro mais cauteloso. Não se lhe pode confiar ornatos mimosos, pois não consente, como o calcareo, para assim dizer formas precisas, arestas nitidamente acentuadas. Muito cedo enegrece, muito cedo também se faz rugoso e começa de puír, sob a chimica das chuvas e dos soes, a vincagem meuda e meios relevos que o artista na pedra levantou.
Á outra, a inaptidão dos architectos é como o lema visivel da inferioridade esthetica de quazi todos os núcleos de raça luzitana, de norte a sul dormida para o inestimável sestro da belleza, e vergonhosamente rebelde, ainda hoje, á comprehensão do papel sociológico da arte. Cimalhas macissas, sob que as paredes parecem estar gemendo; churriguerescos portões, de coruchéus embolados e tympanos mesquinhos; no andar nobre, janellas sem pé direito, como que vindo abaixo ao peso de chicoreas que pezam quintaes, e teem sobre a verga, ás vezes mais d'um terço da altura do portal; frontões macissos, olhos de boi, mansardas, frestas, resultando aspectos d'azylo e cour des miracles; átrios de sombra, calçados como cavalariças e sobre que não cae de cima a chapada de ceu d'um claustro d' arcos; ferros de sacada sem luxo de rocas e volutas; brazões friorentos de meio palmo, como de quem até tem medo de mostrar em pedra, os titules; telhados de tumba, com metade da altura das paredes, revirando nos cantos, como o dos pagodes chinezes, sem uma torre ou mirante, airando, gracil, sobre o rochedo macisso da rezidencia; decoradores da pedra sem o menor instincto do papel do ornato nos grandes lenços, e suas correlações filiadas num leit-motiv, como os trechos das operas na melodia synfonica inicial... nenhuma proporção nobre nas linhas, nenhuma poesia volúvel nos detalhes: e que mais queres, leitor, p'ra te desgostares da tua terra, e mandares ao demo a sensibilidade romba e a preguiça intelectual, polysecular, do portuguez?!
Tão paredes meias da Hespanha, cujas cidades e vilas regorgitam de construções graciosas ou solemnes, do Renascimento ou do período filipino, por vezes carrancudas, certo, mas nunca ridículas, plebeas ou banaes, a terra portugueza não conseguiu, visto as continuas discórdias da guerra e a inveterada negação artística dos filhos, transfiltrar da visinha irmã um pouco da elegância e nobreza d'aqueles seus florentes períodos constructivos.
Por Braga então este mau gosto da architectura civil provoca a náusea, e enche o visitante d'um rancor que a religiosa successivamente epileptisa. Sem duvida os constructores de taes templos, arcebispos e ricos homens, poderiam ter sido piedosas almas, extacticas d'imbecilidade mystica, mas que asinino desprezo da beleza, e que irrespeitoso systema de fazer Deus rezidir em armazéns!
Como os palácios, os templos, quazi todos pertencem de construção ou restauração ao mesmo periodo, séculos XVII e XVIII, épocas talvez em que Braga, pela fortuna agrícola ou difusão maior do espirito religioso, atingiria, suponho, na clientela devota, a máxima riqueza, visto o considerável numero de construções e restaurações datando d' elas. Grande parte d'essas igrejas são vastas, ricas: não houve talvez economia — a não ser n'uma ou noutra capela de talha, que as ha por aqueles cazarões, elegantíssimas, o que houve foi um mau gosto de frade e jezuita, atento o corresponderem aqueles dois séculos á decadência formal da sociedade portugueza, tendo sido, até D. José e D. João V, dos mais chochos e mortos para as artes. O mesmo em Hespanha, onde os architectos remendões do século XVII foram funestos á integridade d'um sem numero de maravilhosos edifícios que por lá vemos deturpados e emplastados, com dolorosa surpreza para os devotos d'aquela Itália moura e barbarenga.
Em Braga restauradores e constructores devem ter sido estúpidos masmarros, de cambulhada com arcebispos e municipios, irrespeitosos do antigo e incapazes de dar corpo a qualquer espécie de construção monumental. Sem duvida demoliriam e estragariam os edificos românicos e godos que os hábeis architectos galegos e leonezes(*) dos séculos XI a XVI por lá teriam edificado, e pelos troços que subsistem, cobertos de remendos e correcções d'epochas espúrias, fácil se apura a hecatombe odiosa que tem sido. A fúria de renovar e reparar produziu no burgo lôbrego de D. Fr. Bartholomeu, tétanos d'asneira a epileptisar de raiva a paciência de qualquer forasteiro iniciado. O que por Braga resta de genuinamente antigo é mui já raro, e esse, pouco mais vale do que como indicador de haver tido n'outro tempo aquela desengraçada terra, algo de bom. A torre do castelo, com os seus machicoulis, intacta, e que ainda ha poucos dias uma vereação imbecil quiz demolir, as ermidas da Conceição (1512) e S. João do Souto (1512), a Misericórdia (1562), uma ou outra casa ou janella manuelina, e finalmente a Sé, tornada n'um enorme cazarão d'escombros sem caracter, eis o que se pode ver d’antigo na architectura de cortiços e arcas de Noé que é o substrato moderno das casarias da cidade.
(*)Não faltam opiniões negando a competência, e mesmo existência, n'aquelas rudes edades, de genuinos architectos portuguezes, e convindo em terem sido estrangeiros, pela mór parte leonezes ou galegos, os auctores dos edifícios monumentaes do norte de Portugal. O secretario do Duque de Lencastre era architecto. Dadas as analogias da Batalha com cathedraes inglezas, quem sabe se teria sido ele o mysterioso auctor dos planos do mosteiro?!
Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 58-63.
Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.
Aparte meia dúzia de palacetes recentes, modelados por architectos do Porto, no feitio de theatros de província, todos ou quazi todos os antigos grandes edifícios civis pertencem aos séculos XVII e XVIII, e devem ser obra de canteiros rudes e mestres d'obras macaqueando sem conhecimento do desenho, nem instinctos da graça d'ensemble, palações Luiz XV e Luiz XVI, por encomenda de fidalgos ricos, tão ignorantes e crassos como elles. Não percorri nenhum d'esses cazarões interiormente, e só pela vestidura externa ajuizo obras que como os palácios arcebispal, municipal, e seus congéneres, teem todo o cunho da barbaria lanzuda e do mau gosto. Á uma, a pedra talhavel é n'estes sitios um granito de bago grosso e conglomeração esferulada, mui rijo ao corte, e que facilmente fendilha sob o estylete do canteiro mais cauteloso. Não se lhe pode confiar ornatos mimosos, pois não consente, como o calcareo, para assim dizer formas precisas, arestas nitidamente acentuadas. Muito cedo enegrece, muito cedo também se faz rugoso e começa de puír, sob a chimica das chuvas e dos soes, a vincagem meuda e meios relevos que o artista na pedra levantou.
Á outra, a inaptidão dos architectos é como o lema visivel da inferioridade esthetica de quazi todos os núcleos de raça luzitana, de norte a sul dormida para o inestimável sestro da belleza, e vergonhosamente rebelde, ainda hoje, á comprehensão do papel sociológico da arte. Cimalhas macissas, sob que as paredes parecem estar gemendo; churriguerescos portões, de coruchéus embolados e tympanos mesquinhos; no andar nobre, janellas sem pé direito, como que vindo abaixo ao peso de chicoreas que pezam quintaes, e teem sobre a verga, ás vezes mais d'um terço da altura do portal; frontões macissos, olhos de boi, mansardas, frestas, resultando aspectos d'azylo e cour des miracles; átrios de sombra, calçados como cavalariças e sobre que não cae de cima a chapada de ceu d'um claustro d' arcos; ferros de sacada sem luxo de rocas e volutas; brazões friorentos de meio palmo, como de quem até tem medo de mostrar em pedra, os titules; telhados de tumba, com metade da altura das paredes, revirando nos cantos, como o dos pagodes chinezes, sem uma torre ou mirante, airando, gracil, sobre o rochedo macisso da rezidencia; decoradores da pedra sem o menor instincto do papel do ornato nos grandes lenços, e suas correlações filiadas num leit-motiv, como os trechos das operas na melodia synfonica inicial... nenhuma proporção nobre nas linhas, nenhuma poesia volúvel nos detalhes: e que mais queres, leitor, p'ra te desgostares da tua terra, e mandares ao demo a sensibilidade romba e a preguiça intelectual, polysecular, do portuguez?!
Tão paredes meias da Hespanha, cujas cidades e vilas regorgitam de construções graciosas ou solemnes, do Renascimento ou do período filipino, por vezes carrancudas, certo, mas nunca ridículas, plebeas ou banaes, a terra portugueza não conseguiu, visto as continuas discórdias da guerra e a inveterada negação artística dos filhos, transfiltrar da visinha irmã um pouco da elegância e nobreza d'aqueles seus florentes períodos constructivos.
Por Braga então este mau gosto da architectura civil provoca a náusea, e enche o visitante d'um rancor que a religiosa successivamente epileptisa. Sem duvida os constructores de taes templos, arcebispos e ricos homens, poderiam ter sido piedosas almas, extacticas d'imbecilidade mystica, mas que asinino desprezo da beleza, e que irrespeitoso systema de fazer Deus rezidir em armazéns!
Como os palácios, os templos, quazi todos pertencem de construção ou restauração ao mesmo periodo, séculos XVII e XVIII, épocas talvez em que Braga, pela fortuna agrícola ou difusão maior do espirito religioso, atingiria, suponho, na clientela devota, a máxima riqueza, visto o considerável numero de construções e restaurações datando d' elas. Grande parte d'essas igrejas são vastas, ricas: não houve talvez economia — a não ser n'uma ou noutra capela de talha, que as ha por aqueles cazarões, elegantíssimas, o que houve foi um mau gosto de frade e jezuita, atento o corresponderem aqueles dois séculos á decadência formal da sociedade portugueza, tendo sido, até D. José e D. João V, dos mais chochos e mortos para as artes. O mesmo em Hespanha, onde os architectos remendões do século XVII foram funestos á integridade d'um sem numero de maravilhosos edifícios que por lá vemos deturpados e emplastados, com dolorosa surpreza para os devotos d'aquela Itália moura e barbarenga.
Em Braga restauradores e constructores devem ter sido estúpidos masmarros, de cambulhada com arcebispos e municipios, irrespeitosos do antigo e incapazes de dar corpo a qualquer espécie de construção monumental. Sem duvida demoliriam e estragariam os edificos românicos e godos que os hábeis architectos galegos e leonezes(*) dos séculos XI a XVI por lá teriam edificado, e pelos troços que subsistem, cobertos de remendos e correcções d'epochas espúrias, fácil se apura a hecatombe odiosa que tem sido. A fúria de renovar e reparar produziu no burgo lôbrego de D. Fr. Bartholomeu, tétanos d'asneira a epileptisar de raiva a paciência de qualquer forasteiro iniciado. O que por Braga resta de genuinamente antigo é mui já raro, e esse, pouco mais vale do que como indicador de haver tido n'outro tempo aquela desengraçada terra, algo de bom. A torre do castelo, com os seus machicoulis, intacta, e que ainda ha poucos dias uma vereação imbecil quiz demolir, as ermidas da Conceição (1512) e S. João do Souto (1512), a Misericórdia (1562), uma ou outra casa ou janella manuelina, e finalmente a Sé, tornada n'um enorme cazarão d'escombros sem caracter, eis o que se pode ver d’antigo na architectura de cortiços e arcas de Noé que é o substrato moderno das casarias da cidade.
(*)Não faltam opiniões negando a competência, e mesmo existência, n'aquelas rudes edades, de genuinos architectos portuguezes, e convindo em terem sido estrangeiros, pela mór parte leonezes ou galegos, os auctores dos edifícios monumentaes do norte de Portugal. O secretario do Duque de Lencastre era architecto. Dadas as analogias da Batalha com cathedraes inglezas, quem sabe se teria sido ele o mysterioso auctor dos planos do mosteiro?!
Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 58-63.
Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Obviamente (2)
A figuração em pedra ou bronze de personalidades destacadas das vilas e cidades cedeu hoje o lugar a composições que visam obter uma identificação imediata do lugar. Obviamente. São marcas colocadas em espaços públicos de grande visibilidade, de preferência rotundas que distribuem o trânsito nos pontos de entrada e atravessamento urbanos. A colecção deste tipo de intervenções com grande impacte visual não cessa de aumentar.
O segundo exemplar que trago pode ser visto em Alpiarça. Situa-se no centro de uma nova praça. Atente-se na legenda da obra.
Que diria o meu Pai?
O meu Pai era um devotado leitor da Brotéria que assinava religiosamente desde tempos que eu não sei precisar (anos 40? 50?).
Quando tomou conhecimento de que eu integrara as hostes multitudinárias dos alunos do Padre Manuel Antunes S. J., o seu espírito inquieto com a mudança de curso (de Direito para História...) e as ideias pouco convencionais de que o seu "promissor" filho se tornara portador nos últimos meses, deve ter sossegado. Nada de muito mal lhe poderia acontecer uma vez posto em contacto com o expoente máximo daquele robusto colectivo de pensadores que constituía a redacção da Brotéria e assegurava, com uma regularidade metronímica, a sua saída mensal - deve ter pensado.
Pois que diria agora o meu Pai se, ao espreitar o blog daquele mesmo seu filho, viesse a descobrir que, afinal, pelo menos 124 dos autores daquele influente repositório do pensamento mais avançado da Igreja não eram mais do que pseudónimos, porventura alter egos, personagens concebidas e corporizadas por um mesmo espírito: o do Padre Manuel Antunes, Director da revista?
Subi as escadas da Brotéria, na Rua António Taborda, para um encontro com o Padre Manuel Antunes em 1972 ou 73. Fui-lhe pedir que remediasse o erro do Prof. Victor Buescu, entretanto falecido, que se esquecera de inscrever nos livros de termos respectivos a minha classificação em História da Civilização Romana. Já lá iam três ou quatro anos desde que eu fora aluno do Padre Manuel Antunes e não estava certo que me reconhecesse e muito menos que se recordasse da nota que me atribuíra. Mas esperava que ele confiasse em mim.
Recebeu-me, numa manhã luminosa da encosta lisboeta da Lapa no escritório que era o seu e cujo aspecto não diferia muito do que aparece na fotografia do post anterior. A sua figura pareceu-me mais franzina, a sua palidez mais acentuada. A sua timidez era sublinhada pela fragilidade do corpo e da saúde e contrariada a golpes de exigência, serenidade, conhecimento e clareza intelectual. Foi a última vez que vi o Professor Padre Manuel Antunes.
Ele vivia na Brotėria. Soube agora que dirigia a Brotéria com o nome Manuel Antunes S.J. e a escrevia com outros 124 nomes. Aquele homem franzino era a Brotéria. Uma revista influente.
Ele era a sua potência, a sua direcção, o seu confronto, a sua diligente atenção, a sua riqueza, a sua unidade e a sua diversidade.
Não é uma história extraordinária?
Quando tomou conhecimento de que eu integrara as hostes multitudinárias dos alunos do Padre Manuel Antunes S. J., o seu espírito inquieto com a mudança de curso (de Direito para História...) e as ideias pouco convencionais de que o seu "promissor" filho se tornara portador nos últimos meses, deve ter sossegado. Nada de muito mal lhe poderia acontecer uma vez posto em contacto com o expoente máximo daquele robusto colectivo de pensadores que constituía a redacção da Brotéria e assegurava, com uma regularidade metronímica, a sua saída mensal - deve ter pensado.
Pois que diria agora o meu Pai se, ao espreitar o blog daquele mesmo seu filho, viesse a descobrir que, afinal, pelo menos 124 dos autores daquele influente repositório do pensamento mais avançado da Igreja não eram mais do que pseudónimos, porventura alter egos, personagens concebidas e corporizadas por um mesmo espírito: o do Padre Manuel Antunes, Director da revista?
Subi as escadas da Brotéria, na Rua António Taborda, para um encontro com o Padre Manuel Antunes em 1972 ou 73. Fui-lhe pedir que remediasse o erro do Prof. Victor Buescu, entretanto falecido, que se esquecera de inscrever nos livros de termos respectivos a minha classificação em História da Civilização Romana. Já lá iam três ou quatro anos desde que eu fora aluno do Padre Manuel Antunes e não estava certo que me reconhecesse e muito menos que se recordasse da nota que me atribuíra. Mas esperava que ele confiasse em mim.
Recebeu-me, numa manhã luminosa da encosta lisboeta da Lapa no escritório que era o seu e cujo aspecto não diferia muito do que aparece na fotografia do post anterior. A sua figura pareceu-me mais franzina, a sua palidez mais acentuada. A sua timidez era sublinhada pela fragilidade do corpo e da saúde e contrariada a golpes de exigência, serenidade, conhecimento e clareza intelectual. Foi a última vez que vi o Professor Padre Manuel Antunes.
Ele vivia na Brotėria. Soube agora que dirigia a Brotéria com o nome Manuel Antunes S.J. e a escrevia com outros 124 nomes. Aquele homem franzino era a Brotéria. Uma revista influente.
Ele era a sua potência, a sua direcção, o seu confronto, a sua diligente atenção, a sua riqueza, a sua unidade e a sua diversidade.
Não é uma história extraordinária?
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Padre Manuel Antunes, surpreendente
Oferta da Câmara Municipal da Sertã (Pelouro da Cultura), onde estive no passado Sábado, trouxe comigo a obra Padre Manuel Antunes, S.J. /1918-1985): um Mestre do Pensamento Português e Europeu, de Luis Machado de Abreu e José Eduardo Franco (s/l, 2008).
Conheço limitadamente a obra do Padre Manuel Antunes. As minhas leituras dos seus textos não deverão ter ido muito além de Repensar Portugal (1979) e Teoria da Cultura (1999), obra resultante de um trabalho de revisão e anotação da sua discípula e admiradora, Maria Ivone Ornelas de Andrade. Devo aliás a Maria Ivone, minha antiga colega na Universidade Lusófona, o estímulo à releitura daquele título e um avivar do interesse pelo legado intelectual daquele meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa. A obra completa de Manuel Antunes, editada pela Fundação Gulbenkian, em 10 volumes com uma média de 600 páginas cada, aguarda uma oportunidade de corajosa de aquisição...
Frequentei as aulas de História da Cultura Clássica, uma cadeira transversal aos diversos cursos da Faculdade de Letras nas décadas de 1960 e de História da Civilização Romana, uma cadeira do Curso de História, leccionadas pelo Prof. Manuel Antunes. Em ambas tinha como assistente o filólogo Victor Buescu (1911-1971), antigo professor da Universidade de Bucareste.
Do livro oferecido na Sertã, que li com interesse, ressalta a síntese do pensamento filosófico e pedagógico do Padre Manuel Antunes. Constitui uma excelente introdução à biografia intelectual do autor, uma das figuras mais relevantes da igreja portuguesa no século XX.
Reconheci nas poucas fotografias a preto e branco do livro ambientes que conheci: a entrada da Brotéria, onde o Padre Manuel Antunes vivia, e o seu escritório, com as pilhas de livros e papéis e uma espécie de "desarrumação" que tanta surpresa me causou quando a observei pessoalmente, na década de 70, e me pareceu em contradição com a figura serena e tão disciplinada do Professor de História da Cultura Clássica.
Pois uma segunda surpresa me trouxe agora o livro de Luis Machado de Abreu e José Eduardo Franco, a páginas 14 e 15. Foi a informação de que Manuel Antunes era apenas um dos - pelo menos 124 nomes - com que assinava os seus textos na Brotéria.
124 nomes! Razões para ser classificado como "o autor que mais uso fez da pseudonímia na história da cultura portuguesa".
Aqui ficam, por ordem alfabética do primeiro nome, ilustrando a imaginação sem precedentes a absolutamente insuspeitada deste professor consagrado.
A. M. Oleiro, A. Pinhal da Cruz, A. Vítor Ferreira, Abel Moradal, Adolfo Simões, Alberto Sobreira, Almiro Fortes, Altino Dias de Lima, Álvaro de Sousa Crato, Álvaro Ribeira Clara, Alves Cruz, Alves Vidigal, André Venestal, Ângelo d’Álvaro, António Trízio, Artur Gomes de Leda, Artur Mongueira, Bento de Serpa, C. de Freitas Manso, C. de Lemos, Carlos Amaral, Carlos Clímaco, Carlos Cumeada, Carlos Horta de Sousa, Carlos Mota, Carlos Neto, Carlos Nunes, Carlos Orvalho, Carlos Outeiro Cruz, Daniel Peres, Dário Diniz, Duarte de Campos, Duarte de Figueiredo, Eduardo Santos Cruz, F. Bravo Gomes, F. de Sousa Santos, F. Lucílio, F. Moradal, Fernando de Serpa, Fernando Relvas, Filipe Almor, Filipe Costa, Flávio Dias, Flávio Ribeiro, Flávio Rodrigues, Francisco Outeiro, Franco de Lima, Gabriel Mira Belmar, Gabriel Vagos, Henrique de Freitas, Horácio Alves, Irénio Figueira, Ivo Castel-Velho, Ivo Lares, J. A. Nunes, J. da Costa Amioso, J. Lifar Filipe, J. Mira de Freitas, Jacinto Alves, João Delta de Sousa, Jorge de Castro, José de Oliveira Ascensão, José Gomes Claro, José Pedro Lavrador, L. da Cunha Novo, L. de Bouçô, L. Fratel, L. Lente Rodrigues, L. Pronto de Sousa, L. Sales Filipe, L. Santos Duarte, Leal de Lemos, Leonel Cardigos, Licínio Alves, Lionel Dias Novo, Lucínio Faro, Luís Amioso, Luís Bonfim, Luís Castelo, Luís Claro Luís, Luís d’ Isna, Luís de Freitas, Luís Dias de Bivar, Luís Franco de Sousa, Luís Ladeira, Luís Maxial, Luís Mendes de Aveiro, Luís Mileu, Luís Mira de Lima, Luís Parreira, Luís Peral da Silva, Luís Portel, Luís Rainho, Luís Sirgado Nunes, Luís Sobral Nunes, Luís Sorvel, Luís Vergão, M. Pinhal da Cruz, M. Simas, M. Veiga da Ponte, M. Veiga-Beiriz, Manuel Avelar, Mauro Diniz, Neves de Lima, Nuno Vieira de Pena, Orlando Cruz, Paulo Ermida, Pedro Lages, Pedro Lobo de Góis, Pedro Marçal, Pedro Palhais, Pedro Pereira, R. Dias de Lagos, R. N. dos Santos Lopes, Raul Santos, Rogério de Campos, Santana Claro, Sereno Silva, Sérgio Orvalho, Tiago do Canto e Silva, Vaz Sobral, Vítor Lança de Frias e Vítor Regorige.
Conheço limitadamente a obra do Padre Manuel Antunes. As minhas leituras dos seus textos não deverão ter ido muito além de Repensar Portugal (1979) e Teoria da Cultura (1999), obra resultante de um trabalho de revisão e anotação da sua discípula e admiradora, Maria Ivone Ornelas de Andrade. Devo aliás a Maria Ivone, minha antiga colega na Universidade Lusófona, o estímulo à releitura daquele título e um avivar do interesse pelo legado intelectual daquele meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa. A obra completa de Manuel Antunes, editada pela Fundação Gulbenkian, em 10 volumes com uma média de 600 páginas cada, aguarda uma oportunidade de corajosa de aquisição...
Frequentei as aulas de História da Cultura Clássica, uma cadeira transversal aos diversos cursos da Faculdade de Letras nas décadas de 1960 e de História da Civilização Romana, uma cadeira do Curso de História, leccionadas pelo Prof. Manuel Antunes. Em ambas tinha como assistente o filólogo Victor Buescu (1911-1971), antigo professor da Universidade de Bucareste.
Do livro oferecido na Sertã, que li com interesse, ressalta a síntese do pensamento filosófico e pedagógico do Padre Manuel Antunes. Constitui uma excelente introdução à biografia intelectual do autor, uma das figuras mais relevantes da igreja portuguesa no século XX.
Reconheci nas poucas fotografias a preto e branco do livro ambientes que conheci: a entrada da Brotéria, onde o Padre Manuel Antunes vivia, e o seu escritório, com as pilhas de livros e papéis e uma espécie de "desarrumação" que tanta surpresa me causou quando a observei pessoalmente, na década de 70, e me pareceu em contradição com a figura serena e tão disciplinada do Professor de História da Cultura Clássica.
Pois uma segunda surpresa me trouxe agora o livro de Luis Machado de Abreu e José Eduardo Franco, a páginas 14 e 15. Foi a informação de que Manuel Antunes era apenas um dos - pelo menos 124 nomes - com que assinava os seus textos na Brotéria.
124 nomes! Razões para ser classificado como "o autor que mais uso fez da pseudonímia na história da cultura portuguesa".
Aqui ficam, por ordem alfabética do primeiro nome, ilustrando a imaginação sem precedentes a absolutamente insuspeitada deste professor consagrado.
A. M. Oleiro, A. Pinhal da Cruz, A. Vítor Ferreira, Abel Moradal, Adolfo Simões, Alberto Sobreira, Almiro Fortes, Altino Dias de Lima, Álvaro de Sousa Crato, Álvaro Ribeira Clara, Alves Cruz, Alves Vidigal, André Venestal, Ângelo d’Álvaro, António Trízio, Artur Gomes de Leda, Artur Mongueira, Bento de Serpa, C. de Freitas Manso, C. de Lemos, Carlos Amaral, Carlos Clímaco, Carlos Cumeada, Carlos Horta de Sousa, Carlos Mota, Carlos Neto, Carlos Nunes, Carlos Orvalho, Carlos Outeiro Cruz, Daniel Peres, Dário Diniz, Duarte de Campos, Duarte de Figueiredo, Eduardo Santos Cruz, F. Bravo Gomes, F. de Sousa Santos, F. Lucílio, F. Moradal, Fernando de Serpa, Fernando Relvas, Filipe Almor, Filipe Costa, Flávio Dias, Flávio Ribeiro, Flávio Rodrigues, Francisco Outeiro, Franco de Lima, Gabriel Mira Belmar, Gabriel Vagos, Henrique de Freitas, Horácio Alves, Irénio Figueira, Ivo Castel-Velho, Ivo Lares, J. A. Nunes, J. da Costa Amioso, J. Lifar Filipe, J. Mira de Freitas, Jacinto Alves, João Delta de Sousa, Jorge de Castro, José de Oliveira Ascensão, José Gomes Claro, José Pedro Lavrador, L. da Cunha Novo, L. de Bouçô, L. Fratel, L. Lente Rodrigues, L. Pronto de Sousa, L. Sales Filipe, L. Santos Duarte, Leal de Lemos, Leonel Cardigos, Licínio Alves, Lionel Dias Novo, Lucínio Faro, Luís Amioso, Luís Bonfim, Luís Castelo, Luís Claro Luís, Luís d’ Isna, Luís de Freitas, Luís Dias de Bivar, Luís Franco de Sousa, Luís Ladeira, Luís Maxial, Luís Mendes de Aveiro, Luís Mileu, Luís Mira de Lima, Luís Parreira, Luís Peral da Silva, Luís Portel, Luís Rainho, Luís Sirgado Nunes, Luís Sobral Nunes, Luís Sorvel, Luís Vergão, M. Pinhal da Cruz, M. Simas, M. Veiga da Ponte, M. Veiga-Beiriz, Manuel Avelar, Mauro Diniz, Neves de Lima, Nuno Vieira de Pena, Orlando Cruz, Paulo Ermida, Pedro Lages, Pedro Lobo de Góis, Pedro Marçal, Pedro Palhais, Pedro Pereira, R. Dias de Lagos, R. N. dos Santos Lopes, Raul Santos, Rogério de Campos, Santana Claro, Sereno Silva, Sérgio Orvalho, Tiago do Canto e Silva, Vaz Sobral, Vítor Lança de Frias e Vítor Regorige.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
De viagem ao Minho, há cem anos. 1 - Portugal foi a primeira colónia galega
Estâncias d'Arte e de Saudade é uma recolha de crónicas de Fialho de Almeida publicada em 1921. A obra foi reeditada em 1924, 1924 (atingindo então o 5º milhar de exemplares). O seu autor tinha porém falecido em 1911, com apenas 54 anos.
Parte desta recolha trata do Minho, mais propriamente de Braga, Famalicão e S. Torcato (Guimarães) que o autor visitou em Setembro/Outubro de um ano que não precisa nos seus textos. A visão que nos deixou, muito crítica, é a de um Minho de influência clerical, com fortes marcas de subdesenvolvimento e atraso material e cultural.
Do lado de Hespanha o gallego cultivado e literatisado absorve-se e transforma-se no hespanhol, de quem já hoje difere completamente. Do nosso lado, o gallego cultivado e litteratisado constitue o portuguez, que continua sendo, máu grado o separatismo de oito séculos, da lingua primitiva, a fórma mais próxima, e por ventura aquela que se falaria hoje em toda a Peninsula se a Galliza nella tem mantido o papel hegemónico que houve até á sua divisão em asturo-leoneza e luzitana. Por estas razões, nós, portuguezes, diremos que ha um monumento chamado Cancioneiro da Vaticana pelo qual dois fragmentos d'um mesmo povo se jungem, por mais que "a bossalidade egoista d'uma politica sem plano"* conseguisse outr'ora quebrar-lhe a inteireza étnica e politica; e ha uma razão de familia pela qual o gallego será sempre para o portuguez um irmão terno, e é que esse irmão quazi que ainda fala o portuguez do Cancioneiro — do Cancioneiro que é como os Luziadas, um dos mais altos cimos da civilisação peninsular occidental.
Visto os postulados de historia e gratidão filial que expostos ficam, poderemos dizer, sem maiormente ferir o escrúpulo scientifico, que Portugal foi a primeira colónia gallega.
No dia em que as nações se conglomerassem exclusivamente por agregados de raça e não pelas eventualidades da historia e da politica, e em que portanto a unidade portugueza fosse um facto, como a aliemã e a italiana, seria ella constituída por Portugal, Galliza e Brazil, confederados, vivendo e trabalhando em unisono, como as vísceras d'um organismo autónomo e perfeito, havendo a separal-as apenas um rio chamado Atlantico, que ellas sulcariam pelos barcos do seu tráfego e os frenesis da sua acção.
*Theophilo Braga — Prologo do Cancioneiro, de Ballesteros, já citado.
Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 20-21.
Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.
Parte desta recolha trata do Minho, mais propriamente de Braga, Famalicão e S. Torcato (Guimarães) que o autor visitou em Setembro/Outubro de um ano que não precisa nos seus textos. A visão que nos deixou, muito crítica, é a de um Minho de influência clerical, com fortes marcas de subdesenvolvimento e atraso material e cultural.
Do lado de Hespanha o gallego cultivado e literatisado absorve-se e transforma-se no hespanhol, de quem já hoje difere completamente. Do nosso lado, o gallego cultivado e litteratisado constitue o portuguez, que continua sendo, máu grado o separatismo de oito séculos, da lingua primitiva, a fórma mais próxima, e por ventura aquela que se falaria hoje em toda a Peninsula se a Galliza nella tem mantido o papel hegemónico que houve até á sua divisão em asturo-leoneza e luzitana. Por estas razões, nós, portuguezes, diremos que ha um monumento chamado Cancioneiro da Vaticana pelo qual dois fragmentos d'um mesmo povo se jungem, por mais que "a bossalidade egoista d'uma politica sem plano"* conseguisse outr'ora quebrar-lhe a inteireza étnica e politica; e ha uma razão de familia pela qual o gallego será sempre para o portuguez um irmão terno, e é que esse irmão quazi que ainda fala o portuguez do Cancioneiro — do Cancioneiro que é como os Luziadas, um dos mais altos cimos da civilisação peninsular occidental.
Visto os postulados de historia e gratidão filial que expostos ficam, poderemos dizer, sem maiormente ferir o escrúpulo scientifico, que Portugal foi a primeira colónia gallega.
No dia em que as nações se conglomerassem exclusivamente por agregados de raça e não pelas eventualidades da historia e da politica, e em que portanto a unidade portugueza fosse um facto, como a aliemã e a italiana, seria ella constituída por Portugal, Galliza e Brazil, confederados, vivendo e trabalhando em unisono, como as vísceras d'um organismo autónomo e perfeito, havendo a separal-as apenas um rio chamado Atlantico, que ellas sulcariam pelos barcos do seu tráfego e os frenesis da sua acção.
*Theophilo Braga — Prologo do Cancioneiro, de Ballesteros, já citado.
Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 20-21.
Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Ferreira da Silva
Não teve (ainda?) a finalização/inauguração que merecia. Não teve (ainda?) o plano de arranjos da zona envolvente que a integre na encruzilhada de espaços funcionais, de edifícios e de referências patrimoniais.
Em suma, não teve a consagração do olhar, da preocupação, do carinho que as intervenções artísticas de nível superior merecem. Refiro-me à fascinante obra que Ferreira da Silva ergueu nas Caldas da Rainha, entre a Mata e o Chafariz das 5 Bicas, o edifício administrativo do Hospital, o Museu do Hospital e das Caldas, as antigas lavandarias e o Hospital Distrital. É uma obra de quase duas décadas, na qual expôs todos os seus recursos plásticos, a suas diversificadas aptidões inovadoras e a sua extraordinária performance técnica.
O que ali está - uma notável instalação urbana criativa - não tem que pedir desculpa de existir, como se incomodasse quem tem de estacionar o carro ou transitar entre serviços. Honra uma cidade de artes, qualifica o seu espaço público, é um símbolo maior da sua capacidade de metamorfose. Pede a atenção da entidade que a encomendou - Hospital - e da que tem a responsabilidade da política cultural - a Câmara - para o que falta fazer. E o que falta fazer é apenas reconhecer o altíssimo valor - patrimonial, urbano e artístico - que foi colocado à disposição da cidade e dos cidadãos.
Em suma, não teve a consagração do olhar, da preocupação, do carinho que as intervenções artísticas de nível superior merecem. Refiro-me à fascinante obra que Ferreira da Silva ergueu nas Caldas da Rainha, entre a Mata e o Chafariz das 5 Bicas, o edifício administrativo do Hospital, o Museu do Hospital e das Caldas, as antigas lavandarias e o Hospital Distrital. É uma obra de quase duas décadas, na qual expôs todos os seus recursos plásticos, a suas diversificadas aptidões inovadoras e a sua extraordinária performance técnica.
O que ali está - uma notável instalação urbana criativa - não tem que pedir desculpa de existir, como se incomodasse quem tem de estacionar o carro ou transitar entre serviços. Honra uma cidade de artes, qualifica o seu espaço público, é um símbolo maior da sua capacidade de metamorfose. Pede a atenção da entidade que a encomendou - Hospital - e da que tem a responsabilidade da política cultural - a Câmara - para o que falta fazer. E o que falta fazer é apenas reconhecer o altíssimo valor - patrimonial, urbano e artístico - que foi colocado à disposição da cidade e dos cidadãos.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
Quando for grande...
Ela aí está, finalmente, anunciada com um mês de antecedência. Contra o Governo e o Presidente. Contra a esquerda toda ela.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
Antoine de Saint Exupéry no Portugal da década de 60
Antoine de Saint-Exupéry entrou em Portugal na década de 60, pela mão de Ruy Belo e da editorial Aster.
O escritor já tinha desaparecido há muito (1944), quando a Bertrand editou Voo Nocturno (em 1954), uma obra de 1931. Mas a Bertrand não deu continuidade ao projecto.
Em 1959, Ruy Belo traduziu para a Aster Piloto de Guerra, livro originalmente publicado em 1943. Nesse mesmo ano, com tradução de Alice Gomes, escritora de livros infantis, irmã de Soeiro Pereira Gomes e mulher de Adolfo Casais Monteiro saiu o Principezinho, uma obra escrita em 1942 quando o autor se encontrava exilado nos Estados Unidos.
Ruy Belo era director literário da Aster, uma editora com ligações a sectores da Igreja, de que aliás Ruy Belo fora um elemento destacado (doutorado em Roma em Direito Canónico e membro da Opus Dei). Em 1966 traduziu e prefaciou Um sentido para a vida (uma colectânea de 1956) que teve 2ª edição logo no ano seguinte. Em 1968 traduziu e prefaciou Cidadela (obra de 1948, inacabada em vida do autor) com igual sucesso de vendas.
Calculo que o Principezinho me tenha sido oferecido pelos meus 10/12 anos (entre 1959 e 1961). A obra que fascinou gerações, e não apenas crianças, produziu-me uma forte impressão, mas a descoberta do autor ocorreu apenas em 66/67, com a leitura de Um sentido para a vida. O título correspondia às minhas próprias inquietações, numa altura em que questionava a relação tradicional com a religião, com a família, a política, o estudo, o futuro, a vida (afinal)
Saint Exupéry era então apresentado como a incarnação do intelectual e homem de acção que se move pelos valores do humanismo. Tratava-se de um humanismo que volta ao indivíduo como princípio e fim de todas as coisas, em nome do qual o escritor/jornalista/aviador recusou os totalitarismos e se empenhou numa espécie de ética da reconciliação. Fazia então todo o sentido para mim.
Foi pois sob influência desta leitura de Exupery que apresentei, com a complacência do José Pacheco Pereira, a proposta de um debate sobre a sua obra à secção cultural da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, superintendida na altura por, entre outros, Fernando Rosas e Mário Vieira de Carvalho. A intenção era convidar um escritor português a falar de um seu confrade europeu.
Creio que a proposta incluía outros nomes, mas a de Saint Exupéry foi a única que vingou. Penso que o escasso êxito da sessão, com um número reduzido de participantes, desmotivou o prosseguimento da iniciativa.
O escritor apontado para falar de Saint Exupéry foi Urbano Tavares Rodrigues. Não me recordo quem o sugeriu, admito ter sido eu próprio, mas era evidente que se pretendeu não entregar a Ruy Belo, com as suas ligações à Aster, a promoção do autor. Urbano era então um escritor bastante lido e conhecido e com opções politicas ligadas à esquerda laica.
Eu tinha entrevistado por escrito Urbano Tavares Rodrigues para a Gazeta das Caldas, mas não o conhecia pessoalmente. Carlos Cáceres Monteiro, meu colega e amigo desse primeiro ano de Direito, tinha um amigo que visitava assiduamente o escritor na sua casa a Picoas. Tratava-se de João Carreira-Bom. Foi este que serviu de intermediário.
Encontrámo-nos com Urbano Tavares Rodrigues depois de jantar. Guardo desse encontro único uma memoria contrastada: simpatia e acolhimento favorável da nossa pretensão, cedência fácil a uma agenda de contactos predadora.
Não sei qual das razões impeliu Urbano a anuir de imediato ao nosso pedido e não sei se a proximidade com Saint Exupéry era assumida. Acredito que ambos reflectiam nas suas opções enquanto escritores uma espécie de poética do texto.
De qualquer modo, não tenho quqluer recordação sobre o que disse Urbano naquela tarde cultural preparada arduamente pelo caloiro da Faculdade de Direito de Lisboa.
Escrevi e bati a stencil - uma aprendizagem que me seria bem útil ao longo nos anos seguintes – o pequeno texto da convocatória (e que figura em anexo) e mobilizei todos os amigos possíveis para a sessão. Tive a impressão de que a secção cultural da Faculdade não morrera de entusiasmo pela proposta, mas não percebi naquela altura porquê. Ouvi o José Pacheco Pereira resmungar entre dentes qualquer coisa sobre o duvidoso percurso de Exupéry e o fraco interesse que lhe despertava a sua obra, mas não entendi os motivos.
Pareceu-me muito injusta toda esta incompreensão dos meus colegas pela discussão de Um sentido para a Vida.
Só agora soube que a Margarida Pino esteve lá. Uma compensação tardia, é certo, mas que atenua a decepção inicial.
O escritor já tinha desaparecido há muito (1944), quando a Bertrand editou Voo Nocturno (em 1954), uma obra de 1931. Mas a Bertrand não deu continuidade ao projecto.
Em 1959, Ruy Belo traduziu para a Aster Piloto de Guerra, livro originalmente publicado em 1943. Nesse mesmo ano, com tradução de Alice Gomes, escritora de livros infantis, irmã de Soeiro Pereira Gomes e mulher de Adolfo Casais Monteiro saiu o Principezinho, uma obra escrita em 1942 quando o autor se encontrava exilado nos Estados Unidos.
Ruy Belo era director literário da Aster, uma editora com ligações a sectores da Igreja, de que aliás Ruy Belo fora um elemento destacado (doutorado em Roma em Direito Canónico e membro da Opus Dei). Em 1966 traduziu e prefaciou Um sentido para a vida (uma colectânea de 1956) que teve 2ª edição logo no ano seguinte. Em 1968 traduziu e prefaciou Cidadela (obra de 1948, inacabada em vida do autor) com igual sucesso de vendas.
Calculo que o Principezinho me tenha sido oferecido pelos meus 10/12 anos (entre 1959 e 1961). A obra que fascinou gerações, e não apenas crianças, produziu-me uma forte impressão, mas a descoberta do autor ocorreu apenas em 66/67, com a leitura de Um sentido para a vida. O título correspondia às minhas próprias inquietações, numa altura em que questionava a relação tradicional com a religião, com a família, a política, o estudo, o futuro, a vida (afinal)
Saint Exupéry era então apresentado como a incarnação do intelectual e homem de acção que se move pelos valores do humanismo. Tratava-se de um humanismo que volta ao indivíduo como princípio e fim de todas as coisas, em nome do qual o escritor/jornalista/aviador recusou os totalitarismos e se empenhou numa espécie de ética da reconciliação. Fazia então todo o sentido para mim.
Foi pois sob influência desta leitura de Exupery que apresentei, com a complacência do José Pacheco Pereira, a proposta de um debate sobre a sua obra à secção cultural da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, superintendida na altura por, entre outros, Fernando Rosas e Mário Vieira de Carvalho. A intenção era convidar um escritor português a falar de um seu confrade europeu.
Creio que a proposta incluía outros nomes, mas a de Saint Exupéry foi a única que vingou. Penso que o escasso êxito da sessão, com um número reduzido de participantes, desmotivou o prosseguimento da iniciativa.
O escritor apontado para falar de Saint Exupéry foi Urbano Tavares Rodrigues. Não me recordo quem o sugeriu, admito ter sido eu próprio, mas era evidente que se pretendeu não entregar a Ruy Belo, com as suas ligações à Aster, a promoção do autor. Urbano era então um escritor bastante lido e conhecido e com opções politicas ligadas à esquerda laica.
Eu tinha entrevistado por escrito Urbano Tavares Rodrigues para a Gazeta das Caldas, mas não o conhecia pessoalmente. Carlos Cáceres Monteiro, meu colega e amigo desse primeiro ano de Direito, tinha um amigo que visitava assiduamente o escritor na sua casa a Picoas. Tratava-se de João Carreira-Bom. Foi este que serviu de intermediário.
Encontrámo-nos com Urbano Tavares Rodrigues depois de jantar. Guardo desse encontro único uma memoria contrastada: simpatia e acolhimento favorável da nossa pretensão, cedência fácil a uma agenda de contactos predadora.
Não sei qual das razões impeliu Urbano a anuir de imediato ao nosso pedido e não sei se a proximidade com Saint Exupéry era assumida. Acredito que ambos reflectiam nas suas opções enquanto escritores uma espécie de poética do texto.
De qualquer modo, não tenho quqluer recordação sobre o que disse Urbano naquela tarde cultural preparada arduamente pelo caloiro da Faculdade de Direito de Lisboa.
Escrevi e bati a stencil - uma aprendizagem que me seria bem útil ao longo nos anos seguintes – o pequeno texto da convocatória (e que figura em anexo) e mobilizei todos os amigos possíveis para a sessão. Tive a impressão de que a secção cultural da Faculdade não morrera de entusiasmo pela proposta, mas não percebi naquela altura porquê. Ouvi o José Pacheco Pereira resmungar entre dentes qualquer coisa sobre o duvidoso percurso de Exupéry e o fraco interesse que lhe despertava a sua obra, mas não entendi os motivos.
Pareceu-me muito injusta toda esta incompreensão dos meus colegas pela discussão de Um sentido para a Vida.
Só agora soube que a Margarida Pino esteve lá. Uma compensação tardia, é certo, mas que atenua a decepção inicial.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Ana Sobral ceramista
Ana Sobral, cuja actividade artística sigo há mais de um década, está num momento particularmente estimulante do seu percurso criativo. O controlo das opções de processo que fez está adquirido e no modesto atelier que mantém na Foz do Arelho, junto da Lagoa de Óbidos, produz hoje peças cerâmicas de grande complexidade e exigência técnica. O regresso à escola (para se licenciar em Artes Plásticas, ramo Escultura) e sobretudo o contacto frequente com outros centros de produção e ceramistas portugueses e de outros países tem funcionado como estímulo ao seu gosto pelo desafio e pela inovação estéticas.
Ontem pude ver no seu atelier, na informalidade com que Ana o franqueia, alguns dos seus trabalhos mais recentes, resultantes de exposições que não pude visitar. Falámos bastante dessas peças e dos projectos novos que aceitou.
Os seus trabalhos são construídos em torno de uma narrativa, pela qual perpassa as mais da vezes uma ironia feminina (ou mesmo “feminista”), uma chamada de atenção ecológica ou um sublinhado irreverente.
Já passava largamente do meio dia quando o sol finalmente rompeu a neblina que cobria a lagoa e inundou o atelier de Ana. Enquanto, no empedrado exterior, eu fotografava a sua colecção de 14 pares de sapatos, os trabalhos de cerâmica dispersos pelo interior da pequena loja adaptada ganhavam novos tons e projectavam novos significados.
Ontem pude ver no seu atelier, na informalidade com que Ana o franqueia, alguns dos seus trabalhos mais recentes, resultantes de exposições que não pude visitar. Falámos bastante dessas peças e dos projectos novos que aceitou.
Os seus trabalhos são construídos em torno de uma narrativa, pela qual perpassa as mais da vezes uma ironia feminina (ou mesmo “feminista”), uma chamada de atenção ecológica ou um sublinhado irreverente.
Já passava largamente do meio dia quando o sol finalmente rompeu a neblina que cobria a lagoa e inundou o atelier de Ana. Enquanto, no empedrado exterior, eu fotografava a sua colecção de 14 pares de sapatos, os trabalhos de cerâmica dispersos pelo interior da pequena loja adaptada ganhavam novos tons e projectavam novos significados.
Ana Sobral: breve nota biográfica
Nasceu em Pemba, Moçambique, em 1957. Reside nas Caldas da Rainha, desde 1980. É diplomada em Escultura pela Escola Superior de Artes e Design desta cidade. Tem participado em inúmeras exposições colectivas e individuais em Portugal (Caldas da Rainha, Torres Vedras, Ericeira, Nazaré, Setúbal, Reguengos de Monsaraz, S. Martinho do Porto, Estoril, Alcobaça). É presença regular nas bienais da Festa do Avante e de Aveiro e está representada em galerias em Lisboa, Porto e Guimarães. Faz parte do colectivo 3 Cs (Associação de Cerâmica Criativa).
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Ontem mares
10h49 (no facebook): Quase um mês sem ver o mar! Há qualquer por dentro de nós que se comprime, ameaça fragmentar. Vou agora tentar recuperar nessa paisagem imensa e viva um pouco mais de luz e um pouco mais de espaço. Atė logo.
11h30: Procurei a Lagoa velada pela neblina da manhã. Um pescador – solitário como todos os pescadores – aguardava a maré.
- Não ligue. Ele está na brincadeira.
- Ah – exclamou o cliente – a senhora é que o conhece bem.
- Sim, há 50 anos que estou casada com este peixe.
- Conhece-o bem. 50 anos de casada. Fora os ameaços?
- Não houve ameaços. O meu pai não deixava as filhas namorarem muito tempo. Um mês e pronto. Era pegar ou largar.
- Então foi tiro e queda!
12h00: no Atelier de Ana Sobral
11h30: Procurei a Lagoa velada pela neblina da manhã. Um pescador – solitário como todos os pescadores – aguardava a maré.
11h45: no Café d'Avó:
- Este nevoeiro é bom para a pesca? – perguntou o cliente ocasional.
- Ora, só lá para a Março é que o peixe bom dá à costa – retorquiu o dono por detrás do balcão. A mulher, de costas, limpava as prateleiras. Virou-se:- Não ligue. Ele está na brincadeira.
- Ah – exclamou o cliente – a senhora é que o conhece bem.
- Sim, há 50 anos que estou casada com este peixe.
- Conhece-o bem. 50 anos de casada. Fora os ameaços?
- Não houve ameaços. O meu pai não deixava as filhas namorarem muito tempo. Um mês e pronto. Era pegar ou largar.
- Então foi tiro e queda!
12h00: no Atelier de Ana Sobral
15h00: S. Martinho
A outra vila de S. Martinho. Depois de almoço de Ano Novo com o "chefe" N. B.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
A oportunidade do telefone
De novo a tua voz imediata (pequena cabine vermelha envidraçada na rua, debaixo de uma árvore, um bêbado não parou de me olhar e queria falar comigo; andava à volta da gaiola de vidro, parava de vez em quando, um pouco ansioso, cim um ar grave, como se fosse pronunciar uma sentença), a tua voz cada vez mais próxima. A oportunidade do telefone - não a devemos perder nunca -, devolve-nos a voz, pela tarde, sobretudo à noite, melhor ainda quando ela surge isolada e o aparelho nos cega a tudo (não sei se alguma vez te disse que, além disso, muitas vezes fecho os olhos enquanto falo contigo), quando tudo corre bem e o timbre reemcontra uma espécie de pureza "filtrada" ( é um pouco neste elemento que eu imagino o regresso dos espectros, pelo efeito ou graça de uma triagem subtil e sublime, essencial - entre os parasitas, porque não há senão parasitas, como sabes, e os espectros não têm qualquer hipótese a menos que só existam, desde o primeiro "vem", espectros. Apercebi-me há dias, durante um pequeno trabalho, que a palavra "parasita" me surgia regularmente, desde há anos, "capítulo" a "capítulo", um número incálculável de vezes. Ora, parasitas podem (ser amados. Nós).
Jacques Derrida, La Carte Postale. De Socrate à Freud et au-delá. I - Envois. p. 14-15.
Cit. Catherine Malabou et Jacques Derrida, Jacques Derrida, la Contre-Allée. Paris, La Quinzainne, 2009. p. 177-178.
Jacques Derrida, La Carte Postale. De Socrate à Freud et au-delá. I - Envois. p. 14-15.
Cit. Catherine Malabou et Jacques Derrida, Jacques Derrida, la Contre-Allée. Paris, La Quinzainne, 2009. p. 177-178.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
Ein jeder Engel ist schrecklich*
3 de Junho de 1977
e quando te chamo meu amor, meu amor, é a ti que chamo ou ao meu amor? Tu, meu amor, és tu que eu assim designo, ė a ti que me dirijo? Não sei se a questão está bem formulada, assusta-me. Mas estou certo de que a resposta, se um dia a tiver, vir-me-á de ti. Só tu, meu amor, só tu o saberás.
Pedimo-nos ambos o impossível, como o impossível.
"ein jeder Engel ist schrecklich", minha amada.
quando te chamo meu amor, é a ti que chamo, ou digo-te meu amor? e quando te digo meu amor declaro-te o meu amor ou digo-te, a ti, meu amor, que tu és meu amor? Eu queria tanto dizer.
Jacques Derrida, La Carte Postale. De Socrate à Freud et au-delá. I - Envois. p. 12-13.
Cit. Catherine Malabou et Jacques Derrida, Jacques Derrida, la Contre-Allée. Paris, La Quinzainne, 2009. p. 177.
* Citação de Rainer Maria Rilke: todos os anjos são terríveis.
e quando te chamo meu amor, meu amor, é a ti que chamo ou ao meu amor? Tu, meu amor, és tu que eu assim designo, ė a ti que me dirijo? Não sei se a questão está bem formulada, assusta-me. Mas estou certo de que a resposta, se um dia a tiver, vir-me-á de ti. Só tu, meu amor, só tu o saberás.
Pedimo-nos ambos o impossível, como o impossível.
"ein jeder Engel ist schrecklich", minha amada.
quando te chamo meu amor, é a ti que chamo, ou digo-te meu amor? e quando te digo meu amor declaro-te o meu amor ou digo-te, a ti, meu amor, que tu és meu amor? Eu queria tanto dizer.
Jacques Derrida, La Carte Postale. De Socrate à Freud et au-delá. I - Envois. p. 12-13.
Cit. Catherine Malabou et Jacques Derrida, Jacques Derrida, la Contre-Allée. Paris, La Quinzainne, 2009. p. 177.
* Citação de Rainer Maria Rilke: todos os anjos são terríveis.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Os óculos de Sophia
Vi Sophia de Melo Breyner Andresen pela primeira vez em 1967. A oportunidade foi criada pelo Colóquio “A Mulher na Sociedade Contemporânea” organizado pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, de que foi uma das oradoras convidadas.
Aluno do primeiro ano, recém-chegado das Caldas da Rainha, nem a palavra nem o conceito de colóquio evocavam para mim experiência anterior. Aquela foi a minha iniciação nesse universo onde se discutem temas complexos e pertinentes, com a ajuda de investigadores e professores seniores. Durante uma semana o anfiteatro 1 encheu-se de gente vinda de dentro e de fora da Faculdade para ouvir falar intelectuais, a maior parte dos quais eram para mim por completo desconhecidos. Alguns vinham rodeados de uma aura de respeito e admiração, pelo trabalho científico realizado ou pela coragem com que tinham enfrentado o ostracismo, a segregação ou mesmo a perseguição do regime. Percebemos todos – os caloiros – que se tratava de uma organização na qual a direcção da associação académica, liderada por Amadeu Lopes Sabino, investira muito. A associação queria reforçar o seu prestígio, somando o pioneirismo e inovação do tema em discussão à relevância dos intervenientes, e transformando um debate de ideias numa grande manifestação cultural de massas. A entrada em vigor, por aqueles anos, do novo Código Civil fora o pretexto para chamar à colação os direitos das mulheres, numa década em que, na Europa e nos Estados Unidos, se consagravam novos papéis da mulher nos planos social económico e politico. Mas o tema poderia também funcionar como um detonador de problemáticas relativas ao atraso cultural português e sobretudo ao controlo politico das liberdades públicas.
Mais apelativas ou áridas, assisti a todas as conferências, incluindo as que versavam assuntos de natureza eminentemente jurídica. Algumas aguardei com particular expectativa, pois conhecia os autores. Entre elas, a principal curiosidade ia para a de Sophia de Melo Breyner Andresen.
Sophia entrou numa sala repleta, com muita gente sentada nas coxias ou encostada às paredes da sala. A sua figura relativamente frágil recortou-se por detrás da secretária, a que se sentou. Habituado a vê-la em fotografia – que se repetem de ano para ano, como se o tempo tivesse parado – estranhei o contraste da figura mais velha com que ali me deparava. No tampo da mesa pousou uma resma de papeis e esperou que a apresentassem e lhe dessem a palavra.
Terminados os preliminares, chegou para junto de si os papéis e principiou a ler. À medida que avançava, o seu corpo fixou-se numa posição oblíqua ao tampo da mesa. Foi então que um pormenor até então ocultado me prendeu a atenção, Sophia, que estava de óculos escuros, tinha-os com uma haste partida. A princípio a coisa intrigou-me. Os óculos escuros atribui-os a uma qualquer necessidade de se proteger da luz artificial do anfiteatro. Mas uma haste partida? Tentei perceber se se trataria de modelo de óculos, mas confirmei que não. Do outro lado, os óculos de Sophia tinham haste inteira. Fora um acidente. Fascinado, tentei perceber como se manteria o equilíbrio. O feitio deles não ajudava. Mas a escritora agia com total naturalidade. Não parecia consciente daquele pormenor que tanto me inquietava. Na leitura do seu texto, que a absorvia totalmente, era absolutamente imperturbável.
Aluno do primeiro ano, recém-chegado das Caldas da Rainha, nem a palavra nem o conceito de colóquio evocavam para mim experiência anterior. Aquela foi a minha iniciação nesse universo onde se discutem temas complexos e pertinentes, com a ajuda de investigadores e professores seniores. Durante uma semana o anfiteatro 1 encheu-se de gente vinda de dentro e de fora da Faculdade para ouvir falar intelectuais, a maior parte dos quais eram para mim por completo desconhecidos. Alguns vinham rodeados de uma aura de respeito e admiração, pelo trabalho científico realizado ou pela coragem com que tinham enfrentado o ostracismo, a segregação ou mesmo a perseguição do regime. Percebemos todos – os caloiros – que se tratava de uma organização na qual a direcção da associação académica, liderada por Amadeu Lopes Sabino, investira muito. A associação queria reforçar o seu prestígio, somando o pioneirismo e inovação do tema em discussão à relevância dos intervenientes, e transformando um debate de ideias numa grande manifestação cultural de massas. A entrada em vigor, por aqueles anos, do novo Código Civil fora o pretexto para chamar à colação os direitos das mulheres, numa década em que, na Europa e nos Estados Unidos, se consagravam novos papéis da mulher nos planos social económico e politico. Mas o tema poderia também funcionar como um detonador de problemáticas relativas ao atraso cultural português e sobretudo ao controlo politico das liberdades públicas.
Mais apelativas ou áridas, assisti a todas as conferências, incluindo as que versavam assuntos de natureza eminentemente jurídica. Algumas aguardei com particular expectativa, pois conhecia os autores. Entre elas, a principal curiosidade ia para a de Sophia de Melo Breyner Andresen.
Sophia entrou numa sala repleta, com muita gente sentada nas coxias ou encostada às paredes da sala. A sua figura relativamente frágil recortou-se por detrás da secretária, a que se sentou. Habituado a vê-la em fotografia – que se repetem de ano para ano, como se o tempo tivesse parado – estranhei o contraste da figura mais velha com que ali me deparava. No tampo da mesa pousou uma resma de papeis e esperou que a apresentassem e lhe dessem a palavra.
Terminados os preliminares, chegou para junto de si os papéis e principiou a ler. À medida que avançava, o seu corpo fixou-se numa posição oblíqua ao tampo da mesa. Foi então que um pormenor até então ocultado me prendeu a atenção, Sophia, que estava de óculos escuros, tinha-os com uma haste partida. A princípio a coisa intrigou-me. Os óculos escuros atribui-os a uma qualquer necessidade de se proteger da luz artificial do anfiteatro. Mas uma haste partida? Tentei perceber se se trataria de modelo de óculos, mas confirmei que não. Do outro lado, os óculos de Sophia tinham haste inteira. Fora um acidente. Fascinado, tentei perceber como se manteria o equilíbrio. O feitio deles não ajudava. Mas a escritora agia com total naturalidade. Não parecia consciente daquele pormenor que tanto me inquietava. Na leitura do seu texto, que a absorvia totalmente, era absolutamente imperturbável.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
Mãe/filha
Dialogo entre Diane, a mãe, e Lane, a filha, no filme Setembro de Woody Allen (1987):
- [Mãe] Tornaste-te tão sensível ultimamente. Não sou culpada de a tua vida não ser como querias. Tens de pegar o touro pelos cornos e fazer as coisas acontecerem.
- [Filha] Nem todos somos dínamos humanos.
- [Marido] A tua mãe tem muita energia.
- [Mãe] Tinhas um futuro tão promissor. Eras tão inteligente. Bonita como eu, mas com melhores ossos. Mais baixa do que eu. Tinhas a inteligência do teu pai. Tens de fazer alguma coisa. És jovem, bonita. Vestes-te como uma refugiada polaca.
- [Filha] Não me tenho sentido muito atraente.
- O Peter acha-te muito bonita e tem toda a razão.
- Acha?
- Está sempre a elogiar-te.
- Deve estar a ser educado.
- Gostas mesmo dele?
- Não sei.
- Tens que ser descontraída. Não podes nunca mostrar o teu desespero.
- Acho que não mostrei.
- Sempre achei que foste demasiado voraz com o teu último namorado.
- Não é verdade.
- Não me parece que o Jeff voltasse tão depressa para a mulher, se não se sentisse pressionado. Eu senti.
- Chama-se Jack. Não estavas por perto, por isso não sabes.
- Não sejas tão defensiva. Baseio-me no tempo em que os vi juntos. Estou a dizer-te o mesmo que muitos psiquiatras caríssimos diriam. No que toca a homens, fazes tudo para impedir a felicidade.
- Se calhar faço.
- Vou deitar isto fora [um vestido]. Parece que vou a uma festa havaiana. Meu Deus, olha para mim. Tenho que refazer a maquilhagem. Envelhecer é diabólico. Especialmente quando te sentes com 21 anos. Todas as forças que nos suportaram ao longo da vida desaparecem uma a uma. Examinas o rosto ao espelho e percebes que falta alguma coisa. Então percebes que é o futuro. É por isso que quero que te encontres a ti própria. Enquanto ainda tens tempo para aproveitar a vida.
- [Mãe] Tornaste-te tão sensível ultimamente. Não sou culpada de a tua vida não ser como querias. Tens de pegar o touro pelos cornos e fazer as coisas acontecerem.
- [Filha] Nem todos somos dínamos humanos.
- [Marido] A tua mãe tem muita energia.
- [Mãe] Tinhas um futuro tão promissor. Eras tão inteligente. Bonita como eu, mas com melhores ossos. Mais baixa do que eu. Tinhas a inteligência do teu pai. Tens de fazer alguma coisa. És jovem, bonita. Vestes-te como uma refugiada polaca.
- [Filha] Não me tenho sentido muito atraente.
- O Peter acha-te muito bonita e tem toda a razão.
- Acha?
- Está sempre a elogiar-te.
- Deve estar a ser educado.
- Gostas mesmo dele?
- Não sei.
- Tens que ser descontraída. Não podes nunca mostrar o teu desespero.
- Acho que não mostrei.
- Sempre achei que foste demasiado voraz com o teu último namorado.
- Não é verdade.
- Não me parece que o Jeff voltasse tão depressa para a mulher, se não se sentisse pressionado. Eu senti.
- Chama-se Jack. Não estavas por perto, por isso não sabes.
- Não sejas tão defensiva. Baseio-me no tempo em que os vi juntos. Estou a dizer-te o mesmo que muitos psiquiatras caríssimos diriam. No que toca a homens, fazes tudo para impedir a felicidade.
- Se calhar faço.
- Vou deitar isto fora [um vestido]. Parece que vou a uma festa havaiana. Meu Deus, olha para mim. Tenho que refazer a maquilhagem. Envelhecer é diabólico. Especialmente quando te sentes com 21 anos. Todas as forças que nos suportaram ao longo da vida desaparecem uma a uma. Examinas o rosto ao espelho e percebes que falta alguma coisa. Então percebes que é o futuro. É por isso que quero que te encontres a ti própria. Enquanto ainda tens tempo para aproveitar a vida.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Literatura, literatura, literatura
8 de Dezembro [1925]
Este caderno do meu diário marca o fim de uma experiência intelectual, inspirada por Hugo e os seus permanentes comentários ao meu idealismo e ao meu puritanismo, que me faziam rejeitar qualquer manifestação de sensualidade tantos nos livros como nas pessoas. Passei então todo este ano a estudar essas manifestações, absorvi calmamente uma quantidade incrível de sensualidade francesa – Ségur, France, Prévost, Loti, Stendhal, Flaubert e inúmeros romances baratos. Além disso, estudei a fundo D’Annunzio que é talvez o mais sensual dos homens e dos artistas e que, mais do que qualquer outro, me teria podido ajudar a compreender a sensualidade uma vez que a oferece em salvas de prata de uma indescritível beleza.
Compreendi tudo. Vivi durante mais de mil horas de leitura no universo do crime, da fraqueza, da brutalidade, do desejo. Vi tudo, percebi tudo.
Perguntei, em seguida, a Hugo – Estás satisfeito com os meus conhecimentos? Vês agora o fundamento das e que julgavas fruto da minha ignorância e da minha inocência? Olha nos meus olhos – já não vagueiam. Já sei tudo. Agora a minha intolerância não vem da minha revolta ou do meu espanto, mas do meu saber. Estás contente?
- Estou satisfeito. Mas tu, minha gatinha, vejo que continuas como eras quando te encontrei. Tu eras perfeita. Não quero que leias esses livros!
E, através desta contradição bem masculina, pude compreender que tinha lido o suficiente para satisfazer o seu desejo de me ampliar o espírito.
Naturalmente eu não sou a mesma de quando me encontrou. Tenho mais idade, sou menos feliz, menos sonhadora. O cinismo europeu não passou pelo eu espírito sem pelo deixar ao menos uma dúvida. Mas, no mais fundo de mim, o meu ideal permanece, pleno de exigência e de rigor. Estes livros provaram que o mal existe, mas não que ele é o bom caminho. Ninguém me poderá impedir de experimentar uma adoração sagrada pela vida de Leonard da Vinci e uma repulsa pela de D’Annunzio. Mas aprendi a apreciar o que havia de bem em D’Annunzio. Aprendi a compaixão e a tolerância. Penso que o meu juízo não é influenciado pelas minhas reacções pessoais, como Hugo me apontava justificadamente. O mais importante é que acredito que Hugo compreende o sentido belo e nobre que dou ao puritanismo como ideal. Sente que levei longe as minhas pesquisas para afastar a possibilidade de um instintivo e cego recato perturbar o meu discernimento. E reclama de novo doçura, paz e clareza de espírito da mulher que durante muito tempo se debruçou sobre o abismo. Poder-se-á dizer, depois disto, que o homem é fácil de satisfazer?
Anaïs Nin, Journaux de Jeunesse: 1914-1931. Editions Stock, 2010. p. 910-911.
Nota:
Anaïs Nin nasceu em 1903 em Neuilly-sur-Seine e morreu em Los Angeles em 1977. Os seus pais eram músicos, membros da pequena aristocracia cubana. Ele, pianista e compositor, tinha sido criado em Espanha. Ela, cantora, tinha ascendência francesa e dinamarquesa. O casal teve três filhos e desavenças constantes que culminaram na separação em 1913. Anaïs e seus irmãos seguiram para Nova Iorque em 1914. Foi aí, com 11 anos, que iniciou a escrita do Diário. Antes já tinha vivido em Havana, Arcachon, Berlim, Bruxelas, Barcelona e Cádis.
Através do seu Diário, vemos crescer a adolescente, sempre saudosa de seu Pai, que se tornará uma das mulheres mais cortejadas da história da literatura do século XX. Como escreve a sua biógrafa Nancy Houston, num texto que intitulou “Et la fille devient ... femmes!”: a partir dos 17 anos, os homens começam a rondá-la e nunca deixarão de o fazer. Anaïs sente-se lisonjeada, surpreendida, maravilhada, reconhecida. Ouve-os e dispensa-os alternadamente, sente bater o coração, escreve escreve escreve no seu diário.”
Em 1923 casa com Hugo Guiller, de origem escocesa. O casal instala-se em Paris, onde Hugo, funcionário de um banco, fora colocado.
Este caderno do meu diário marca o fim de uma experiência intelectual, inspirada por Hugo e os seus permanentes comentários ao meu idealismo e ao meu puritanismo, que me faziam rejeitar qualquer manifestação de sensualidade tantos nos livros como nas pessoas. Passei então todo este ano a estudar essas manifestações, absorvi calmamente uma quantidade incrível de sensualidade francesa – Ségur, France, Prévost, Loti, Stendhal, Flaubert e inúmeros romances baratos. Além disso, estudei a fundo D’Annunzio que é talvez o mais sensual dos homens e dos artistas e que, mais do que qualquer outro, me teria podido ajudar a compreender a sensualidade uma vez que a oferece em salvas de prata de uma indescritível beleza.
Compreendi tudo. Vivi durante mais de mil horas de leitura no universo do crime, da fraqueza, da brutalidade, do desejo. Vi tudo, percebi tudo.
Perguntei, em seguida, a Hugo – Estás satisfeito com os meus conhecimentos? Vês agora o fundamento das e que julgavas fruto da minha ignorância e da minha inocência? Olha nos meus olhos – já não vagueiam. Já sei tudo. Agora a minha intolerância não vem da minha revolta ou do meu espanto, mas do meu saber. Estás contente?
- Estou satisfeito. Mas tu, minha gatinha, vejo que continuas como eras quando te encontrei. Tu eras perfeita. Não quero que leias esses livros!
E, através desta contradição bem masculina, pude compreender que tinha lido o suficiente para satisfazer o seu desejo de me ampliar o espírito.
Naturalmente eu não sou a mesma de quando me encontrou. Tenho mais idade, sou menos feliz, menos sonhadora. O cinismo europeu não passou pelo eu espírito sem pelo deixar ao menos uma dúvida. Mas, no mais fundo de mim, o meu ideal permanece, pleno de exigência e de rigor. Estes livros provaram que o mal existe, mas não que ele é o bom caminho. Ninguém me poderá impedir de experimentar uma adoração sagrada pela vida de Leonard da Vinci e uma repulsa pela de D’Annunzio. Mas aprendi a apreciar o que havia de bem em D’Annunzio. Aprendi a compaixão e a tolerância. Penso que o meu juízo não é influenciado pelas minhas reacções pessoais, como Hugo me apontava justificadamente. O mais importante é que acredito que Hugo compreende o sentido belo e nobre que dou ao puritanismo como ideal. Sente que levei longe as minhas pesquisas para afastar a possibilidade de um instintivo e cego recato perturbar o meu discernimento. E reclama de novo doçura, paz e clareza de espírito da mulher que durante muito tempo se debruçou sobre o abismo. Poder-se-á dizer, depois disto, que o homem é fácil de satisfazer?
Anaïs Nin, Journaux de Jeunesse: 1914-1931. Editions Stock, 2010. p. 910-911.
Nota:
Anaïs Nin nasceu em 1903 em Neuilly-sur-Seine e morreu em Los Angeles em 1977. Os seus pais eram músicos, membros da pequena aristocracia cubana. Ele, pianista e compositor, tinha sido criado em Espanha. Ela, cantora, tinha ascendência francesa e dinamarquesa. O casal teve três filhos e desavenças constantes que culminaram na separação em 1913. Anaïs e seus irmãos seguiram para Nova Iorque em 1914. Foi aí, com 11 anos, que iniciou a escrita do Diário. Antes já tinha vivido em Havana, Arcachon, Berlim, Bruxelas, Barcelona e Cádis.
Através do seu Diário, vemos crescer a adolescente, sempre saudosa de seu Pai, que se tornará uma das mulheres mais cortejadas da história da literatura do século XX. Como escreve a sua biógrafa Nancy Houston, num texto que intitulou “Et la fille devient ... femmes!”: a partir dos 17 anos, os homens começam a rondá-la e nunca deixarão de o fazer. Anaïs sente-se lisonjeada, surpreendida, maravilhada, reconhecida. Ouve-os e dispensa-os alternadamente, sente bater o coração, escreve escreve escreve no seu diário.”
Em 1923 casa com Hugo Guiller, de origem escocesa. O casal instala-se em Paris, onde Hugo, funcionário de um banco, fora colocado.
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