O património permite-nos cartografar a cidade, com uma cartografia afectiva e culta. Mas ele não é o único elemento dessa cartografia, e não pode ser concebido como o elemento imutável. O património vive, mas não tem vida própria. Produz valores, é certo, mas é o contexto que os explicita e os projecta.
A memória de uma cidade está nos seus museus, mas tem de estar também nas suas ruas, praças, mercados, fachadas, gente. Nas suas esquinas. “A cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, em cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes” (Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, Lisboa, 1997).
A memória de uma cidade não pode viver do efémero comemoracionista ou do album de fotografias. A memória de uma cidade é um contínuo de gerações, em que cada uma herda e acrescenta à herança o seu próprio sonho, o seu próprio desejo de futuro. A memória e o património são um elemento do metabolismo das cidades, não um entrave ao progresso.
Usando uma linguagem pedida de empréstimo ao Padre António Vieira, diria que o passado contém profecias sobre o futuro. À medida que elas se cumprem, o que era promessa torna-se realidade, ou seja “discurso e boa razão”. O "discurso e boa razão" lança nova luz sobre o passado, dispensando a fé como critério de adesão. “Até agora” - pregava o jesuíta à côrte da Restauração, em 1642, dois anos após a recuperação do trono por uma linhagem portuguesa – “era necessária pia afeição para dar fé às nossas profecias, mas hoje basta o discurso e boa razão, porque os efeitos presentes das passadas são novas profecias dos futuros” (Sermões, I, edição Sá da Costa).
É por isso que não há cidade histórica sem cidade imaginária. A cidade imaginária é dinâmica, porque reflecte, é reflexiva não é um puro reflexo.
Uma cidade é um cruzamento de gerações e de espíritos, espíritos de lugar. Por isso é que a sua riqueza se alimenta do imaginário.
O património é sobretudo um produtor de imaginário. Não podemos prescindir dele, é ele que ajuda a criar o nosso futuro. Deixa-nos mais livres, resolve-nos as questões da herança e do seu peso, porventura excessivo, se o não soubermos seleccionar e adaptar. Temos que saber lidar com o património para podermos mudar, e mudar bem.
A cidade imaginária baseia-se no conhecimento. Desoculta o passado que parecia escondido, sepultado, e considera-o digno de compreensão e vida. Torna menos nebuloso o futuro, ao qual procura transmitir claridade e, afinal, sopro, inspiração, por um lado, continuidade e segurança, por outro.
Siegfried Lenz, no seu célebre romance Heritage, refere-se à terra natal, não como o lugar onde estão enterrados os nossos antepassados, mas como o lugar onde lançamos as nossas raízes. Elas podem ser produto da imaginação. “Para te ajudar a compreender isto tudo" - diz Ziegmunt Rogalla, retido na cama do hospital, em consequência das queimaduras recebidas durante o fogo do Museu histórico masuriano, ao jovem que o escuta - "para te ajudar a compreender tudo isto pede à Henrike que te fale da nossa pátria. A terra natal pode ser um sítio onde nunca tenhas ido, nota bem. No caso dela, criou muitas imagens a partir da imaginação e de informações que recolheu. Talvez tenha uma visão mais pura do que nós, os velhos que lá vivemos”.
Sem a cidade imaginária, fica a cidade material, a que se vê, a horrível cidade triste e decadente, pequenina e onde todos se vêem a todos. Ora nós precisamos, como escreveu Paulo Cunha e Silva nas suas crónicas do Diário de Notícias (2003), da cidade onde somos espírito, onde nos podemos encastrar, desaparecer sem ser vistos, apesar de podermos (e gostarmos de o ser) reconhecidos.
A cidade imaginária é a cidade que pensa sobre si própria, que reflecte sobre a sua identidade, sabendo que o que foi não é o que será, embora faça parte do que pode vir a ser.
A cidade imaginária é a cidade que se alimenta, não da contemplação mas do diálogo com os outros, os de antes e os de agora, cidade que não se limita a responder a situações, mas as antecipa.
A cidade imaginária não tem medo de interrogar os outros, de estabelecer laços com outras cidades, de criar um vaivem, de se confrontar com a diversidade. A cidade imaginária é uma cidade aberta, porque não ficou prisioneira de si mesma, não se deixou manietar pela tradição, nem alienar pelo folclore.
A cidade imaginária é uma cidade de cultura. Onde a cultura não é parente pobre que só se senta à mesa em dias especiais, mas um parceiro leal, credível, de todos os dias. A cultura permite-nos ver para além de nós e da nossa pequenina circunstância. Olhamos de outro ponto, para dentro e para fora. Ganhamos dimensão, desejo, escala, superamo-nos. Pela cultura garantimos generosidade, única arma contra a mesquinhez, falta de visão e de ambição.
A cidade imaginária é a que tira partido das raízes, da memória genética, que a desenvolve, que inova, que refaz os desígnios e alicia os protagonistas para a sua partilha.
A cidade imaginária repudia a indiferença e a resignação, não se importa de correr riscos, de perturbar, de acrescentar, de ousar, de marcar presença.
A cidade imaginária é aquela em que “os vivos pedem para depois de mortos um destino diferente do que lhes calhou” (Italo Calvino, outra vez). Mas para isso têm de reconhecer a cidade em que viveram.
Quando virámos costas à cidade histórica, construímos uma outra cidade, mais individualista, mais hedonista, mais indiferenciada, mais agressiva, menos apropriável.
A cidade imaginária é democrática, é toda a cidade e não a cidade dos poderes, sejam eles técnicos ou políticos. É a cidade onde todos participam no problema e todos participam na solução.
É uma cidade de pessoas, não de objectos.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
terça-feira, 29 de junho de 2010
domingo, 27 de junho de 2010
Monsaraz (2): que turismo?
Tenho uma memória pessoal imprecisa de Monsaraz antes de 1987. Nesse ano, fui convidado por um grupo de amigos e antigos alunos para participar num colóquio sobre “Poderes locais em perspectiva histórica”. O encontro pode não ter sido um acontecimento científico digno de nota – a verdade é que as actas nunca foram publicadas – mas foi um êxito de comunicação (a concentração de jovens historiadores do liberalismo era impressionante) e julgo que não deixou de ter alguns reflexos na imagem externa do concelho. O facto de a Ana Paula Amendoeira ter regressado à sua terra natal, depois de concluído o seu curso de História, contribuiu também e simultaneamente, para um novo interesse por Monsaraz como destino de turismo cultural. A Ana Paula encetava então uma carreira na autarquia, como técnica superior da área cultural, vindo a ser chamada em 2000, às funções de Chefe de Divisão da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz. Toda a sua actuação se pautou por uma cuidada e exigente atenção ao património e uma criteriosa programação cultural que habitasse sustentavelmente aquele património.
Entre o final da década de 80 e o ano de 2005 devo ter rumado a Monsaraz todos os anos, mais do que uma vez, em busca do sossego das suas ruas, das novidades do seu turismo gastronómico e residencial, para participar nas suas festas da Olaria e do Barro, seguir algumas iniciativas mais envolventes, preparar ou integrar visitas de outras personagens, procurar amigos entretanto criados (a começar pela própria Ana Paula), acompanhar trabalhos de campo que tinham por objecto a mudança provocada pelo turismo, ou até para proporcionar ao meu filho uma semana de concentração e estudo em véspera de exames importantes. Em 2001, comissariei, a convite da Ana Paula, uma exposição do ceramista Ferreira da Silva em Monsaraz, integrada na semana de animação cultural e artística baptizada “Monsaraz Museu Aberto”.
Conheci pois, de perto, a evolução do turismo cultural de Monsaraz, a orientação que foi transmitida à actuação da autarquia, os seus pontos de apoio públicos e particulares, e realizações mais significativas.
Uma recente visita a Monsaraz, após uma interrupção de 4 anos, permitiu perceber que, entretanto, alguma coisa mudara.
Havia uma feira de velharias na Praça central, mas o único multibanco da vila não funcionava (e parecia não funcionar há semanas). Há uma loja de vinhos (ligada à Cooperativa de Reguengos) e um café-restaurante com mobiliário desenhado, mas fechou um dos restaurantes de comida tradicional. Há duas lojas novas, uma das quais gerida por uma cidadã do norte da Europa, mas à noite não encontrei nem um café aberto, nem uma sombra de vida na rua.
A animação do espaço público extinguiu-se pois, aparentemente, e terá sido absorvida por eventos promovidos por uma ou outro estabelecimento turístico (hotéis ou restaurantes). Mas sobretudo não vi nenhum sinal de um, um só, evento cultural inscrito em programa, passado ou futuro. Na sede do concelho, alguns cartazes anunciavam para as próximas festas dos santos, uma tourada.
Fiquei com a sensação de que uma mutação dos fluxos turísticos estava em curso, com uma aposta da autarquia sobretudo no destino Alqueva.
Se assim foi, Monsaraz pode ter deixado de ser um destino prioritário para ser um destino associado. O esforço para conferir ao destino Monsaraz uma identidade turística, baseada não apenas na fruição do património, mas no seu estudo e discussão, numa actividade cultural exigente e contemporânea, e que vinha sendo dominante na acção da autarquia, foi abandonado. Monsaraz tenderá a tornar-se um ponto de passagem para os que se dirigem à barragem do Alqueva. Verifiquei que muito deste turismo se desloca em grupo organizado e, certamente, após um passeio de barco, procura um restaurante de grandes dimensões, com a logística adequada. Os restaurantes de Monsaraz não estão nesse registo.
A visão mais eloquente desta (má) impressão foi-me dada pela instalação que o escultor José Aurélio criou para a edição de 2000 de "Monsaraz Museu Aberto". Tratava-se de uma armação em ferro com uma dezena de tubos no cimo dos quais peixes de várias cores se moviam com o vento. Este conjunto de cataventos recuperava pois a imagem do peixe voador, numa alusão ao grande lago do Alqueva, naquele ano ainda em fase de enchimento. Pois bem, na ausência de manutenção ou reparação, os tubos já não apresentam peixes, na sua maioria, e os poucos sobreviventes estão empenados e tem os mecanismos giratórios emperrados. Deplorável!
sábado, 26 de junho de 2010
Monsaraz (1): o processo de patrimonialização
Nas décadas de 60 e 70 do século XX, registou-se um significativo movimento de compras de casas em Monsaraz. O movimento teve um protagonista central, um conhecido e abastado advogado de Lisboa que sozinho adquiriu cerca de uma vintena de casas, num processo que, se não tivesse sido contrariado, poderia ter terminado na compra da povoação, depois de dela ter sido expulsa mais de metade da sua população. Mas esse movimento continuou nas décadas seguintes. Praticamente dois terços do parque habitacional da povoação mudou de mãos, tendo as famílias locais perdido para estrangeiros e forasteiros, que apenas as frequentam ao fim de semana ou nas férias, as suas residências permanentes.
Por outro lado, em todo o período analisado, de 1957 a 1997, nenhuma obra particular de reconstrução ou remodelação foi de facto inviabilizada. Durante as primeiras duas décadas nem sequer foi objecto de parecer por um corpo técnico especializado, nas segundas duas décadas mesmo não aprovada, acabou por ser construída. Em consequência, estas obras alteraram a estrutura das habitações, mudaram a cor dos edifícios e outros elementos caracterizadores estéticos, decorativos e funcionais. Onde existiam casas identificadas pela sua cor, surgiu um casario monotonamente branco. Nem mesmo as obras destinadas ao turismo tiveram rumo diferente. Por exemplo, obras de adaptação a um turismo da habitação – ironia das ironias – destruiram a botica da antiga vila. Proliferam nos últimos tempos os aumentos de densidade, através dos destaques das áreas de logradouros junto às muralhas, após os respectivos proprietários terem conseguido criar um TO com uma licença de obras para construção de arrecadações.
Se esse é o panorama das obras particulares, menos problemático não o das obras municipais. Preservado o castelo – medieval – as fortificações seiscentistas de Monsaraz estão hoje transformadas em parques de estacionamento, por iniciativa da Câmara efectivada em 1989, depois de em 1948 terem estado à venda (o que só não se consumou porque a população de mobilizou em protesto). Essa intervenção destruiu o fosso da muralha e cobriu todo o pavimento com uma calçada de xisto em cutelo, apresentada como um equivalente (aliás puramente imaginário) de calçada medieval.
Da mesma obra fez parte a instalação de potentes projectores em torno da muralha, de forma a criar um cenário que obviamente nada tem de medieval e altera a leitura da presença discreta da arquitectura e do próprio monumento.
Entretanto, a vila passou de 347 habitantes em 1960 para 145 em 1995. A escola primária tem sido artificialmente mantida. Em 1950, podíamos detectar, pela análise demográfica, mais de uma vintena de profissões em Monsaraz; hoje apenas seis, metade das quais ligadas ao turismo.
Neste período, a vida quotidiana e social empobreceu quantitativa e qualitativamente em relação ao que sucedia algumas décadas atrás. Há menos diversidade. A sociabilidade tradicional foi destruída e não deu origem a outra. As práticas recuperadas na maior dos casos perderam o sentido original. Exemplo: a matança do porco é agora um evento, que culmina numa refeição paga, enquanto no passado fazia parte do processo de abastecimento e gestão da economia familiar.
É isto que nos conta Ana Paula Amendoeira, no seu livro Monsaraz. Reconstruir a Memoria, onde narra com pormenor todo o processo de patrimonialização, conduzido sem critério histórico nem controlo patrimonial da vila histórica. Ana Paula conta esta história triste de uma forma contida. Fala de uma realidade que conhece pela investigação e que vive como pessoa, uma realidade que certamente quis que fosse diferente e que, na medida em que lhe foi possível, tentou contrariar.
Hoje já não é possível voltar a Monsaraz sem ter em conta este interessantíssimo (mesmo que um pouco cruel) trabalho da Ana Paula. Não sei se ele pode inspirar as autoridades locais e os responsáveis pelas politicas públicas de património. Mas sei que este livro constitui um contributo precioso para a discussão da orientação que lhes damos e demos. Gostaria evidentemente, porque gosto de Monsaraz, que este livro constituísse uma ocasião dramática para pensar o que fizemos e encetar um novo caminho, com as alianças necessárias, para dar vida à povoação. Desconheço se há energia e motivação suficientes para isso. Mas gostaria que o case study que Ana Paula nos trouxe com competência e consciência patrimonial nos inspirasse na reflexão e na intervenção.
Por outro lado, em todo o período analisado, de 1957 a 1997, nenhuma obra particular de reconstrução ou remodelação foi de facto inviabilizada. Durante as primeiras duas décadas nem sequer foi objecto de parecer por um corpo técnico especializado, nas segundas duas décadas mesmo não aprovada, acabou por ser construída. Em consequência, estas obras alteraram a estrutura das habitações, mudaram a cor dos edifícios e outros elementos caracterizadores estéticos, decorativos e funcionais. Onde existiam casas identificadas pela sua cor, surgiu um casario monotonamente branco. Nem mesmo as obras destinadas ao turismo tiveram rumo diferente. Por exemplo, obras de adaptação a um turismo da habitação – ironia das ironias – destruiram a botica da antiga vila. Proliferam nos últimos tempos os aumentos de densidade, através dos destaques das áreas de logradouros junto às muralhas, após os respectivos proprietários terem conseguido criar um TO com uma licença de obras para construção de arrecadações.
Se esse é o panorama das obras particulares, menos problemático não o das obras municipais. Preservado o castelo – medieval – as fortificações seiscentistas de Monsaraz estão hoje transformadas em parques de estacionamento, por iniciativa da Câmara efectivada em 1989, depois de em 1948 terem estado à venda (o que só não se consumou porque a população de mobilizou em protesto). Essa intervenção destruiu o fosso da muralha e cobriu todo o pavimento com uma calçada de xisto em cutelo, apresentada como um equivalente (aliás puramente imaginário) de calçada medieval.
Da mesma obra fez parte a instalação de potentes projectores em torno da muralha, de forma a criar um cenário que obviamente nada tem de medieval e altera a leitura da presença discreta da arquitectura e do próprio monumento.
Entretanto, a vila passou de 347 habitantes em 1960 para 145 em 1995. A escola primária tem sido artificialmente mantida. Em 1950, podíamos detectar, pela análise demográfica, mais de uma vintena de profissões em Monsaraz; hoje apenas seis, metade das quais ligadas ao turismo.
Neste período, a vida quotidiana e social empobreceu quantitativa e qualitativamente em relação ao que sucedia algumas décadas atrás. Há menos diversidade. A sociabilidade tradicional foi destruída e não deu origem a outra. As práticas recuperadas na maior dos casos perderam o sentido original. Exemplo: a matança do porco é agora um evento, que culmina numa refeição paga, enquanto no passado fazia parte do processo de abastecimento e gestão da economia familiar.
É isto que nos conta Ana Paula Amendoeira, no seu livro Monsaraz. Reconstruir a Memoria, onde narra com pormenor todo o processo de patrimonialização, conduzido sem critério histórico nem controlo patrimonial da vila histórica. Ana Paula conta esta história triste de uma forma contida. Fala de uma realidade que conhece pela investigação e que vive como pessoa, uma realidade que certamente quis que fosse diferente e que, na medida em que lhe foi possível, tentou contrariar.
Hoje já não é possível voltar a Monsaraz sem ter em conta este interessantíssimo (mesmo que um pouco cruel) trabalho da Ana Paula. Não sei se ele pode inspirar as autoridades locais e os responsáveis pelas politicas públicas de património. Mas sei que este livro constitui um contributo precioso para a discussão da orientação que lhes damos e demos. Gostaria evidentemente, porque gosto de Monsaraz, que este livro constituísse uma ocasião dramática para pensar o que fizemos e encetar um novo caminho, com as alianças necessárias, para dar vida à povoação. Desconheço se há energia e motivação suficientes para isso. Mas gostaria que o case study que Ana Paula nos trouxe com competência e consciência patrimonial nos inspirasse na reflexão e na intervenção.
Ana Paula Amendoeira, Monsaraz. Reconstruir a Memória. Lisboa, Colibri, 2009.
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Es(quinas)
O chamamento, num tom ansioso, chegava-me cada vez mais distintamente. – “João José? Filho? João José?”. Agora percebia que era a voz da minha mãe. Tentei abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam-me. Procurei levantar-me, mas o corpo não obedecia. Mexi os lábios, mas não consegui articular qualquer palavra.
Ergui o braço que logo voltou a cair. A minha mãe continuava a pronunciar o meu nome. A sua voz estava agora muito perto. Estremeci, agitado. “Oh, graças a Deus!” – disse ela, num tom que me sossegou. “Não deve ser grave”, pensei, tentando perceber se a aflição em redor podia ter sido ocasionada por mim. No meu quotidiano o síndrome de “suspeito do costume” era tão frequentemente activado que me treinara a descortinar todas as escapatórias. E ali, na solicitude inquieta da minha mãe, eu podia adivinhar uma folga oportuna. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, não parecia ter sido culpa minha. De modo que me atrevi a perguntar: - “Que foi, mãe?” - e, desta vez, a minha voz, embora trémula, soou-me clara.
– “Consegues levantar-te?” Só então percebi que estava deitado no chão, meio torcido sobre mim próprio, uma perna e um braço dobrados e a cabeça muito demasiado perto do tamborete que suportava o pote antigo das azeitonas. Fiz um esforço e consegui sentar-me. Não me doía nada, outra conclusão desafiadora, pois era sabido que um extenso cardápio de pequenas dores faz parte das atribulações do dia a dia de um miúdo irrequieto. Confiante, tentei pôr-me de pé, mas sem o auxílio da minha mãe, provavelmente teria voltado ingloriamente ao chão. Sentia-me um pouco zonzo, mas estranhamente feliz, como se tivesse regressado à vida, sentindo pouco a pouco o corpo readquirir equilíbrio e as sensações reconfortantes do espaço e do tempo.
Não me lembrava do que sucedera. A última sensação que retivera era do mundo a rodopiar à minha volta e da queda iminente. – “Perdeste os sentidos, meu filho.“ A expressão era nova para mim, tentei absorver o significado das palavras: - “Perdi os sentidos?” - repeti em voz alta. – “E agora, mãe, já apareceram?” – “Ouvi um grito teu, seguido de um estrondo e vim a correr. Estavas caído no chão e não me ouvias. Que aconteceu? Porque gritaste”?
Parca em novidades, a pequena aldeia fez do acontecimento tema de comentários no dia seguinte.
- “O menino teve um desmaio”, contou a Francelina. - “A mãe não o deixou sair toda a tarde, coitadito”. -“Foi um grande susto”, rematou o Tóino. -“Aquilo passou-se quando ele estava à janela”. – “Muito gosta ele de ir para aquela janela!” – observou o Rosinda. – “Põe-se ali a ver os animais que passam no carreiro, os pássaros que se empoleiram na árvore. Às vezes cola papéis com palavras nos vidros. E desenhos. Fotografias. Bocados de jornais. Outras vezes, abre-a para ouvir melhor”. – “Oh, é para escutar o ruído dos carros e das camionetas que passam além, na estrada de macdam”. – “Põe-se a olhar para os montes e para as nuvens como se dali viessem sinais”. - “Foi o que aconteceu ontem. Ao abrir a janela bateu com o cotovelo na quina”. – “Até me faz impressão só de pensar. Dizem que é uma dor horrível”. – “Quina contra quina – quina do braço contra quina da janela”.
[Colaboração do autor deste blogue para a série "Janelas" do blogue dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão]
Ergui o braço que logo voltou a cair. A minha mãe continuava a pronunciar o meu nome. A sua voz estava agora muito perto. Estremeci, agitado. “Oh, graças a Deus!” – disse ela, num tom que me sossegou. “Não deve ser grave”, pensei, tentando perceber se a aflição em redor podia ter sido ocasionada por mim. No meu quotidiano o síndrome de “suspeito do costume” era tão frequentemente activado que me treinara a descortinar todas as escapatórias. E ali, na solicitude inquieta da minha mãe, eu podia adivinhar uma folga oportuna. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, não parecia ter sido culpa minha. De modo que me atrevi a perguntar: - “Que foi, mãe?” - e, desta vez, a minha voz, embora trémula, soou-me clara.
– “Consegues levantar-te?” Só então percebi que estava deitado no chão, meio torcido sobre mim próprio, uma perna e um braço dobrados e a cabeça muito demasiado perto do tamborete que suportava o pote antigo das azeitonas. Fiz um esforço e consegui sentar-me. Não me doía nada, outra conclusão desafiadora, pois era sabido que um extenso cardápio de pequenas dores faz parte das atribulações do dia a dia de um miúdo irrequieto. Confiante, tentei pôr-me de pé, mas sem o auxílio da minha mãe, provavelmente teria voltado ingloriamente ao chão. Sentia-me um pouco zonzo, mas estranhamente feliz, como se tivesse regressado à vida, sentindo pouco a pouco o corpo readquirir equilíbrio e as sensações reconfortantes do espaço e do tempo.
Não me lembrava do que sucedera. A última sensação que retivera era do mundo a rodopiar à minha volta e da queda iminente. – “Perdeste os sentidos, meu filho.“ A expressão era nova para mim, tentei absorver o significado das palavras: - “Perdi os sentidos?” - repeti em voz alta. – “E agora, mãe, já apareceram?” – “Ouvi um grito teu, seguido de um estrondo e vim a correr. Estavas caído no chão e não me ouvias. Que aconteceu? Porque gritaste”?
Parca em novidades, a pequena aldeia fez do acontecimento tema de comentários no dia seguinte.
- “O menino teve um desmaio”, contou a Francelina. - “A mãe não o deixou sair toda a tarde, coitadito”. -“Foi um grande susto”, rematou o Tóino. -“Aquilo passou-se quando ele estava à janela”. – “Muito gosta ele de ir para aquela janela!” – observou o Rosinda. – “Põe-se ali a ver os animais que passam no carreiro, os pássaros que se empoleiram na árvore. Às vezes cola papéis com palavras nos vidros. E desenhos. Fotografias. Bocados de jornais. Outras vezes, abre-a para ouvir melhor”. – “Oh, é para escutar o ruído dos carros e das camionetas que passam além, na estrada de macdam”. – “Põe-se a olhar para os montes e para as nuvens como se dali viessem sinais”. - “Foi o que aconteceu ontem. Ao abrir a janela bateu com o cotovelo na quina”. – “Até me faz impressão só de pensar. Dizem que é uma dor horrível”. – “Quina contra quina – quina do braço contra quina da janela”.
[Colaboração do autor deste blogue para a série "Janelas" do blogue dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão]
Raoul Dufy, Open Window at Saint Jeannet, 1926
quinta-feira, 24 de junho de 2010
quarta-feira, 23 de junho de 2010
D. Afonso Henriques "republicano"
Resumo de breve intervenção efectuada hoje à noite, na Praça da Oliveira, em Guimarães, num colóquio realizado após a estreia de um filme de Ricardo Freitas sobre as comemorações dos 900 anos de Afonso Henriques, em 2009.
Em primeiro lugar, registe-se que os 800 anos de Afonso Henriques não foram comemorados há 100 anos, mas há 98 anos. Aparentemente a Segunda República reconheceu mais dois anos de vida ao primeiro rei, pois celebrou em 2009 o que a Primeira celebrara em 1911.
Em segundo lugar, ao contrário de um entendimento que já vi expresso, os republicanos vimaranenses de 1911 não tiveram dificuldades em lidar com a memória do rei fundador, que já tinha no espaço público da cidade lugar destacado: uma estátua da autoria de Soares dos Reis erguida na Praça Afonso Henriques (espaço coincidente com parte da Alameda de S. Dâmaso dos nossos dias).
A 8 de Março, Câmara e Associação Comercial acordam num programa comemorativo para o dia 1 de Agosto (dia do nascimento de Afonso Henriques, ou seja, “do primeiro vimaranense e do primeiro português”), do qual fará parte uma (re)inauguração da estátua do Rei que, para o efeito, será transferida para local apropriado, e um conjunto de propostas endereçadas ao Governo: feriado nacional a 1 de Agosto, cunhagem de moedas e edição de selos alusivos ao 8º centenário.
As celebrações vimaranenses de 1911 acabariam por se efectuar a 6 de Agosto, um Domingo, e não a 1. Constaram fundamentalmente de uma reunião na Sociedade Martins Sarmento, seguida de um cortejo até à estátua agora transferida para o Largo do Toural, na base da qual foi descerrada uma lápide testemunhando a gratidão dos vimaraneneses de 1911 para com o fundador de Portugal.
Em primeiro lugar, registe-se que os 800 anos de Afonso Henriques não foram comemorados há 100 anos, mas há 98 anos. Aparentemente a Segunda República reconheceu mais dois anos de vida ao primeiro rei, pois celebrou em 2009 o que a Primeira celebrara em 1911.
Em segundo lugar, ao contrário de um entendimento que já vi expresso, os republicanos vimaranenses de 1911 não tiveram dificuldades em lidar com a memória do rei fundador, que já tinha no espaço público da cidade lugar destacado: uma estátua da autoria de Soares dos Reis erguida na Praça Afonso Henriques (espaço coincidente com parte da Alameda de S. Dâmaso dos nossos dias).
Largo Afonso Henriques - antes de 1911
Desde 8 de Fevereiro de 1911 que a Câmara aprovara a despesa de 1,5 contos para a remodelação urbanística daquela Praça, cujo projecto - iniciado em 1906 mas ainda não concluído - viria, aliás, a ter incidência na praça contígua, do Toural. A Câmara republicana olhara, desde o início, para esta última praça com especial atenção. Ela deveria ser, por contraposição às praças da cidade antiga, o centro cívico da modernidade. Por isso, a 2 de Novembro, deliberara a nova Câmara republicana remover as grades do jardim do Toural.A 8 de Março, Câmara e Associação Comercial acordam num programa comemorativo para o dia 1 de Agosto (dia do nascimento de Afonso Henriques, ou seja, “do primeiro vimaranense e do primeiro português”), do qual fará parte uma (re)inauguração da estátua do Rei que, para o efeito, será transferida para local apropriado, e um conjunto de propostas endereçadas ao Governo: feriado nacional a 1 de Agosto, cunhagem de moedas e edição de selos alusivos ao 8º centenário.
As celebrações vimaranenses de 1911 acabariam por se efectuar a 6 de Agosto, um Domingo, e não a 1. Constaram fundamentalmente de uma reunião na Sociedade Martins Sarmento, seguida de um cortejo até à estátua agora transferida para o Largo do Toural, na base da qual foi descerrada uma lápide testemunhando a gratidão dos vimaraneneses de 1911 para com o fundador de Portugal.
Largo do Toural/Praça do Libertador de Portugal - depois de 1911
Desde o dia 2 de Agosto que a Câmara deliberara rebaptizar o Toural de Praça do Fundador de Portugal e o Largo D. Afonso Henriques de Passeio da Independência. Mas a 9 de Agosto decidiu efactuar uma correcção na decisão anterior e assim o Toural passou, de Praça do Fundador, a chamar-se Praça do Libertador de Portugal.Projecto Toural, 1911
Fontes:
Arquivo Municipal Alfredo Pimenta:
Actas da Câmara
Projectos de obras
terça-feira, 22 de junho de 2010
"Os golos são como o ketchup...
... que quando aparece, aparece todo de uma vez. E por isso não estou preocupado" - Cristiano Ronaldo. Que acrescentou: "Deus sabe quem trabalha. E quem merece".
segunda-feira, 21 de junho de 2010
domingo, 20 de junho de 2010
Condolências sentidas. Homenagem (sincera)
Presidente da República enviou condolências à Família de Rosa Lobato de Faria
O Presidente da República enviou uma mensagem de condolências à Família de Rosa Lobato de Faria. É o seguinte o teor da mensagem do Presidente:
"É com profundo pesar que apresento as mais sentidas condolências, em nome dos Portugueses, em meu nome pessoal e da minha mulher, à família de Rosa Lobato de Faria, figura notável que hoje nos deixou e a cuja memória presto a minha sincera homenagem. Rosa Lobato de Faria marcou decisivamente o nosso meio artístico e granjeou a justa admiração do público. Estou certo de que o seu nome ficará para sempre associado à televisão, ao cinema e à literatura das últimas décadas.
Aníbal Cavaco Silva"
Presidente da República enviou condolências pela morte do escritor José Saramago
O Presidente da República enviou uma mensagem de condolências à Família do escritor José Saramago.
É o seguinte o teor da mensagem do Presidente:
"Escritor de projecção mundial, justamente galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago será sempre uma figura de referência da nossa cultura.
Em nome dos Portugueses e em meu nome pessoal, presto homenagem à memória de José Saramago, cuja vasta obra literária deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras.
À Família do escritor, endereço as minhas mais sentidas condolências.
Aníbal Cavaco Silva"
O Presidente da República enviou uma mensagem de condolências à Família de Rosa Lobato de Faria. É o seguinte o teor da mensagem do Presidente:
"É com profundo pesar que apresento as mais sentidas condolências, em nome dos Portugueses, em meu nome pessoal e da minha mulher, à família de Rosa Lobato de Faria, figura notável que hoje nos deixou e a cuja memória presto a minha sincera homenagem. Rosa Lobato de Faria marcou decisivamente o nosso meio artístico e granjeou a justa admiração do público. Estou certo de que o seu nome ficará para sempre associado à televisão, ao cinema e à literatura das últimas décadas.
Aníbal Cavaco Silva"
Presidente da República enviou condolências pela morte do escritor José Saramago
O Presidente da República enviou uma mensagem de condolências à Família do escritor José Saramago.
É o seguinte o teor da mensagem do Presidente:
"Escritor de projecção mundial, justamente galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago será sempre uma figura de referência da nossa cultura.
Em nome dos Portugueses e em meu nome pessoal, presto homenagem à memória de José Saramago, cuja vasta obra literária deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras.
À Família do escritor, endereço as minhas mais sentidas condolências.
Aníbal Cavaco Silva"
sábado, 19 de junho de 2010
Tempos
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.[...]
O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar.
José Saramago, Palavras para uma Cidade.
O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar.
José Saramago, Palavras para uma Cidade.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
O "terceiro" quadro
Prosseguiu hoje o ciclo comemorativo dos 50 anos de Museu da Casa dos Patudos com uma palestra da série “Uma peça comentada por...” Nicolau Borges escolheu o par constituído por uma pintura de Columbano - Silva Porto no seu Atelier – e outra de Silva Porto – “Na pastagem”. Ambas de 1883, a primeira constitui uma homenagem do jovem Columbano a Silva Porto que retrata em plena acção. Curiosamente, apesar de se tratar de um quadro de exterior, Silva Porto surge no seu atelier, a terminar o quadro. Anos mais tarde, na década de 1920, tendo Columbano assumido a direcção do Museu de Arte Contemporânea (actual Museu do Chiado), procurou adquirir o quadro de Silva Porto a que o seu aludia. Não o conseguiu. Encarregou-se disso José Relvas que assim conseguiu juntar referente e referido, numa composição a que Nicolau Borges chamou “3º quadro”.
Magnífica - segura e rica de pormenores e sugestões - incursão pelos caminhos da pintura naturalista e realista dos finais do século XIX a que assistimos. Dois autores unidos pelo tempo, convergindo na vontade de contribuir para uma escola portuguesa de pintura, unidos pela convicção de que em Portugal o modernismo não era uma urgência. Partilharam experiências, afectos e clientelas, apesar das diferenças de discurso artístico.
A música acompanhou o sarau. A jovem Diana Rama, alpiarcense, estudante de saxofone no Conservatório de Santarém, foi a solista convidada.
Magnífica - segura e rica de pormenores e sugestões - incursão pelos caminhos da pintura naturalista e realista dos finais do século XIX a que assistimos. Dois autores unidos pelo tempo, convergindo na vontade de contribuir para uma escola portuguesa de pintura, unidos pela convicção de que em Portugal o modernismo não era uma urgência. Partilharam experiências, afectos e clientelas, apesar das diferenças de discurso artístico.
A música acompanhou o sarau. A jovem Diana Rama, alpiarcense, estudante de saxofone no Conservatório de Santarém, foi a solista convidada.
Facebook e SMS
12h00:
Discutimos arduamente o valor das propinas dos cursos de mestrado. Há quem demonstre que não são rentáveis. Há quem considere que o peso que têm no défice do Instituto pode afectar a qualidade do ensino de 1º ciclo. E não contabilizamos a qualificação do território, do corpo docente e das instituições de ensino superior que os cursos de mestrado originam?
13h02:
SMS: Saramago morreu.
SMS: Oh. Já sinto a falta daquela figura amargurada.
13h15:
Confirmação no El País.
E, de repente, nesta reunião longa, a notícia triste de que morreu José Saramago.
15h43:
A obra é o que sobrevive. Mas a tristeza vem da falta da figura amargurada, da voz rezingona, das palavras às vezes cruéis, da rebeldia desconfortável.
Discutimos arduamente o valor das propinas dos cursos de mestrado. Há quem demonstre que não são rentáveis. Há quem considere que o peso que têm no défice do Instituto pode afectar a qualidade do ensino de 1º ciclo. E não contabilizamos a qualificação do território, do corpo docente e das instituições de ensino superior que os cursos de mestrado originam?
13h02:
SMS: Saramago morreu.
SMS: Oh. Já sinto a falta daquela figura amargurada.
13h15:
Confirmação no El País.
E, de repente, nesta reunião longa, a notícia triste de que morreu José Saramago.
15h43:
A obra é o que sobrevive. Mas a tristeza vem da falta da figura amargurada, da voz rezingona, das palavras às vezes cruéis, da rebeldia desconfortável.
segunda-feira, 14 de junho de 2010
Casas tristes e sítios abandonados
Seguindo um indicação do El Pais, podemos mapear as consequências da bolha imobiliária nestes curiosos sites:
- Casas tristes;
- Sítios abandonados.
Em qualquer deles, encontrará preciosas indicações sobre links correlacionados com o tema.
- Casas tristes;
- Sítios abandonados.
Em qualquer deles, encontrará preciosas indicações sobre links correlacionados com o tema.
domingo, 13 de junho de 2010
De que estamos à espera?
Felipe Gonzalez ontem:
Não podemos esperar mais pela reforma do sistema financeiro. Nada mudou no comportamento dos agentes financeiros mundiais. Nada. Os Governos do mundo não vão ter outra oportunidade histórica de fazer uma operação de resgate, como a que está a ser feita há dois anos. Isto já custou 17 pontos do Produto Interno Bruto europeu. 17 anos de esforço europeu serviram para este resgate. Já era tempo de reformar, de cortar, de proibir as operações especulativas que não têm sequer registos contabilísticos ou qualquer tipo de controlo. De que estamos à espera?
Não podemos esperar mais pela reforma do sistema financeiro. Nada mudou no comportamento dos agentes financeiros mundiais. Nada. Os Governos do mundo não vão ter outra oportunidade histórica de fazer uma operação de resgate, como a que está a ser feita há dois anos. Isto já custou 17 pontos do Produto Interno Bruto europeu. 17 anos de esforço europeu serviram para este resgate. Já era tempo de reformar, de cortar, de proibir as operações especulativas que não têm sequer registos contabilísticos ou qualquer tipo de controlo. De que estamos à espera?
O Zé Povinho em 3D
Personagem gráfica, o Zé Povinho foi sobretudo um comentador da vida nacional. Figura criada pelo desenho, enverga a pele curtida de um eterno esquecido, vítima e bode expiatório dos males nacionais. Resiste mas não se revolta, aceita as imposições que lhe surgem, mais do que injustas, incompreensíveis. Símbolo do atraso, é o contraponto da lógica do Estado a que se sujeita, com surda indignação. No dia a dia do jornalista que se debruça com ironia e sarcasmo sobre os acontecimentos da política e vida mundana lisboeta, o Zé Povinho é um recurso do ilustrador que dele fez uma personagem.
A entronização cerâmica do Zé Povinho criou uma outra projecção da figura. Em primeiro lugar atribuiu-lhe um papel na narrativa nacional. O Zé Povinho será doravante menos uma personagem do que uma categoria social, num país dominantemente rural e analfabeto. Em segundo lugar, tranformou-o em "boneco", inserindo-o na extensa galeria de objectos de oláricos representativos de tipos populares.
O Zé Povinho gráfico confrontava a elite letrada e governante com o outro lado da sociedade e do país. O Zé Povinho a três dimensões foi levado para o interior das habitações, onde encontrou um destino decorativo.
A entronização cerâmica do Zé Povinho criou uma outra projecção da figura. Em primeiro lugar atribuiu-lhe um papel na narrativa nacional. O Zé Povinho será doravante menos uma personagem do que uma categoria social, num país dominantemente rural e analfabeto. Em segundo lugar, tranformou-o em "boneco", inserindo-o na extensa galeria de objectos de oláricos representativos de tipos populares.
O Zé Povinho gráfico confrontava a elite letrada e governante com o outro lado da sociedade e do país. O Zé Povinho a três dimensões foi levado para o interior das habitações, onde encontrou um destino decorativo.
sábado, 12 de junho de 2010
Zé Povinho
Peço ao meu amigo Vitor Vladimiro Ferreira licença para, neste dia dos 135 anos de vida da criatura mais emblemática de Rafael Bordalo Pinheiro, transcrever um texto com que ele honrou, há alguns anos, o catálogo de uma exposição que em 2005 assinalou a passagem do centenário da morte do ceramista e ilustrador [Rafael Bordalo Pinheiro e a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (1884-1905)]
Pareceria mal, nesta lenga-lenga bordaliana não falar no “Zé Povinho”, figura que há cem anos se instalou no nosso imaginário, mesmo que hoje essa imagem rural, broeira, bronca, e falsamente aparvalhada, venha sendo maquilhada pela influência da TV, pela circulação de turistas e de emigrantes, até pelo aburguesar fomentado pela globalização, mesmo que o país continue carente de melhorias culturais e sociais.
Depois, verdade é que se a personagem se foi aperaltando, alguns dos valores que representava continuam vigorosos: ainda rosna entre dentes - também em voz alta, pelo telefone e pela escrita - que as culpas são todas “deles”; enche o peito, pronto a regougar com muito palavreado soez; dá-se pouco a livros e ao estudo; ama a canção popular e urbana que é o Fado lisboeta, continua a tornear com habilidade os espinhos do quotidiano, a ser desconfiado e estatisticamente xenófobo; e gosta do bom prato, ainda que não destrinçando qualitativamente entre cozidos, grelhados, guisados e assados, desde que bem regados com o nacional sumo de uva.
O nervo da modernidade, no entanto, leva as camadas mais jovens a emborcar mais cerveja do que “tinto”, a espraiar-se nas areias atlânticas, a ter gosto pelas viagens por cá e por aí fora; a perder-se pelo futebol – um desporto que nascido aristocraticamente em Inglaterra se mundializou, atravessando democraticamente as classes sociais -, a regalar-se com as estrangeiras que “turistam” ao nosso Sol, enfim, todos os bons motivos, para além dos políticos, que proporcionariam a Bordalo Pinheiro, se ainda por cá andasse, continuar a escalpelizar a nossa sociedade.
Pareceria mal, nesta lenga-lenga bordaliana não falar no “Zé Povinho”, figura que há cem anos se instalou no nosso imaginário, mesmo que hoje essa imagem rural, broeira, bronca, e falsamente aparvalhada, venha sendo maquilhada pela influência da TV, pela circulação de turistas e de emigrantes, até pelo aburguesar fomentado pela globalização, mesmo que o país continue carente de melhorias culturais e sociais.
Depois, verdade é que se a personagem se foi aperaltando, alguns dos valores que representava continuam vigorosos: ainda rosna entre dentes - também em voz alta, pelo telefone e pela escrita - que as culpas são todas “deles”; enche o peito, pronto a regougar com muito palavreado soez; dá-se pouco a livros e ao estudo; ama a canção popular e urbana que é o Fado lisboeta, continua a tornear com habilidade os espinhos do quotidiano, a ser desconfiado e estatisticamente xenófobo; e gosta do bom prato, ainda que não destrinçando qualitativamente entre cozidos, grelhados, guisados e assados, desde que bem regados com o nacional sumo de uva.
O nervo da modernidade, no entanto, leva as camadas mais jovens a emborcar mais cerveja do que “tinto”, a espraiar-se nas areias atlânticas, a ter gosto pelas viagens por cá e por aí fora; a perder-se pelo futebol – um desporto que nascido aristocraticamente em Inglaterra se mundializou, atravessando democraticamente as classes sociais -, a regalar-se com as estrangeiras que “turistam” ao nosso Sol, enfim, todos os bons motivos, para além dos políticos, que proporcionariam a Bordalo Pinheiro, se ainda por cá andasse, continuar a escalpelizar a nossa sociedade.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Cheiros
Anaïs Nin conta a história de um homem que perdeu todo o seu poder sedutor, no dia em que deixou de usar o perfume que a atraía.
Orhan Pamuk, falando da filha, escreve "Pensamos um no outro e, quando estamos separados, recordamos, cada um. o cheiro do outro. Quando ela não está, sinto terrivelmente a falta do cheiro do seu cabelo. Quando eu não estou, ela cheira o meu pijama".
Orhan Pamuk, falando da filha, escreve "Pensamos um no outro e, quando estamos separados, recordamos, cada um. o cheiro do outro. Quando ela não está, sinto terrivelmente a falta do cheiro do seu cabelo. Quando eu não estou, ela cheira o meu pijama".
quarta-feira, 9 de junho de 2010
"O espectador faz o quadro"
Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp está condensada da numa frase muito citada: “o espectador faz o quadro”. Manifestada com tão insolente precisão, parece negar a existência da obra de arte e proclamar um niilismo ingénuo. Num texto breve publicado em 1957 (“O processo criador”), clarifica um pouco a sua ideia. De acordo com esta nota, o artista nunca tem plena consciência da sua obra: entre as suas intenções e a respectiva realização, entre o que quer dizer e o que diz a obra, há uma diferença. Essa ”diferença” é, na realidade, a obra de arte. O espectador não julga o quadro pelas intenções do seu autor, mas pelo que realmente vê; esta visão nunca é objectiva: o espectador interpreta e “refina” o que vê. A “diferença” é transformada noutra diferença, a obra de arte noutra obra de arte. Do meu ponto de vista, a explicação de Duchamp não dá conta do acto ou processo criador em toda a sua integridade. É verdade que o espectador cria uma obra de arte distinta da imaginada pelo artista, mas, entre uma e outra, entre o que o artista quis dizer e o que o espectador julga ver, há uma realidade: a obra. Sem essa realidade é impossível que se dê a recriação do espectador. A obra faz o olho que a olha – ou, ao menos, é um ponto de partida: o espectador inventa outra obra a partir dela e por causa dela. O valor de um quadro, de um poema ou de qualquer outra criação artística mede-se pelos signos que nos revela e pelas possibilidades que contém de os combinarmos. Uma obra de arte é uma máquina de significar. Neste sentido, a ideia de Duchamp não é inteiramente falsa: o quadro depende do espectador porque só ele pode por em movimento o aparelho de signos que é toda a obra de arte. Nisto reside o fascínio do Grande Vidro e dos ready-made: um e outros reclamam uma contemplação activa, uma participação criadora. Fazem-nos e nós fazemo-los.
Octavio Paz, Apariencia desnuda. La obra de Marcel Duchamp. Madrid, Alianza Editorial, 2008. p. 98-99.
Octavio Paz, Apariencia desnuda. La obra de Marcel Duchamp. Madrid, Alianza Editorial, 2008. p. 98-99.
terça-feira, 8 de junho de 2010
Emídio Ferreira
Terminou hoje o seu exercício, à frente do Conselho Técnico-Científico da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, o Professor Emídio Ferreira. Ocupava o cargo desde a criação e instalação do órgão, em Fevereiro de 2009, para o qual foi eleito por unanimidade. No actual pedido de exoneração, pesou a expectativa de uma próxima aposentação.
O Professor Emídio Ferreira foi um dos esteios intelectuais da ESAD, um dos seus docentes mais preparados e uma referencia da instituição que ajudou a fundar e formar.
Além da admiração pela sua cultura vasta e diversificada, liga-me a Emídio Ferreira uma profunda e longa amizade, feita principalmente da partilha de algumas das suas mais admiráveis qualidades: uma inesgotável curiosidade pelo fenómeno cultural, designadamente na sua vertente artística, um interesse acurado pela vida politica, o gosto da descoberta e da compreensão do novo, o prazer da viagem, da mesa e, em geral, da vida. O Emídio é um conversador nato, disponível para uma imensidade de assuntos, prolixo, incansável, sem tempo. Em sua casa, em Lisboa, onde tantas vezes aportei depois de jantar, nos anos 90, raramente nos dávamos por vencidos antes das 3 da manhã.
Conhecemo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, no final da década de 60. O Emídio frequentava o Curso de Filologia Românica. Do seu grupo de afinidades intelectuais e politicas alguns membros vinham de Santarém, em cujo liceu ele estudara. Nasceu em Alcanena, numa família ligada à indústria de curtumes. A tropa, em Angola, interrompeu-lhe os estudos e condicionou-lhe ou marcou-lhe, como a quase toda uma geração, percursos e visões do mundo. Perdemo-nos o rasto. Só nos voltamos a encontrar, 20 anos mais tarde, nas Caldas da Rainha.
Integrando desde Março de 1989, a Comissão Instaladora da Escola de Arte e Design, criada por decreto publicado em Dezembro do ano anterior, tive o prazer de propor a admissão do Professor Emídio Ferreira no corpo docente da Escola, logo no ano seguinte. Fez pois parte do primeiro núcleo de professores da ESAD, aquele que, com a Comissão Instaladora, acompanhou as negociações para a definição dos Cursos iniciais, discutiu os respectivos planos curriculares, planeou o primeiro ano lectivo e preparou a primeira versão do Programa Preliminar que deveria servir de base ao lançamento de um concurso para dotar a instituição de edifício próprio. Foi o responsável pela cadeira de História da Arte e da Cultura que começou a funcionar no ano lectivo de 1990/91.
O Professor Emídio Ferreira após conclusão da sua licenciatura, passara pelo ensino secundário, rumara a Itália, desempenhando as funções de Leitor de Cultura Portuguesa na prestigiada Universidade de Veneza, e obtivera o grau de mestre em História de Arte, na Universidade Nova de Lisboa, salvo erro numa das primeiras edições do Curso de Mestrado criado sob a égide do Professor José-Augusto França.
Deixei a direcção da ESAD em Março de 1991, mas a experiência gratificante e intensa do verdadeiro processo de instalação dos dois anos anteriores deixou em todos os que nela participaram marcas profundas. Fora um tempo de projecto discutido, de desenho participado, de debate aprofundado e sem limitações, de confronto de experiências e perspectivas, de construção. Foi essa experiência que permitiu ao Prof. Emídio Ferreira enfrentar com resiliência um doloroso e injusto afastamento da Escola a que se dedicara com empenho e competência. Nesse período, felizmente resolvido com uma reorientação pacificadora da direcção da ESAD, a nossa convivência foi revigorada, alimentada aliás por novos projectos de intervenção educativa e profissional.
Quando eu próprio regressei à ESAD, no quadro agora de uma vinculação efectiva, o Professor Emídio Ferreira já nela reassumira as funções docentes. Quando fiz as minhas provas para professor adjunto, em Junho de 2004, coube-lhe arguir, com a isenção e proficiência, a minha dissertação, o que para mim só constituiu, além de um prazer, um acrescido motivo de estímulo. Por essa época, Emídio Ferreira tomara a decisão de passar a residir nas Caldas da Rainha, tendo adquirido uma casa no centro histórico, que recuperou de forma exemplar e decorou com o bom gosto que o caracteriza (com a cumplicidade “militante” da Isabel Tomé, evidentemente).
Este depoimento não é uma biografia, nem sequer um testemunho circunstanciado de alguém que tem tido o privilegio de aceder à intimidade de Emídio Ferreira, beneficiar e devolver a sua solidariedade. É sobretudo um pequeno gesto público, uma chamada de atenção para um professor que foi – e continua a ser - muito importante na vida de uma Escola que ocupa um lugar méritório no panorama do ensino artístico e do design.
É uma homenagem sentida a um amigo de múltiplas andanças, e a manifestação de um voto preocupado. E este voto é o de que a Escola, com a qual tão generosamente se envolveu, o não esqueça neste ciclo em que se comemoram duas décadas de existência, e de que a cidade, que adoptou para residência, saiba nele despertar o desejo de colaborar em iniciativas para as quais a sua formação e gosto o recomendam superiormente.
O Professor Emídio Ferreira foi um dos esteios intelectuais da ESAD, um dos seus docentes mais preparados e uma referencia da instituição que ajudou a fundar e formar.
Além da admiração pela sua cultura vasta e diversificada, liga-me a Emídio Ferreira uma profunda e longa amizade, feita principalmente da partilha de algumas das suas mais admiráveis qualidades: uma inesgotável curiosidade pelo fenómeno cultural, designadamente na sua vertente artística, um interesse acurado pela vida politica, o gosto da descoberta e da compreensão do novo, o prazer da viagem, da mesa e, em geral, da vida. O Emídio é um conversador nato, disponível para uma imensidade de assuntos, prolixo, incansável, sem tempo. Em sua casa, em Lisboa, onde tantas vezes aportei depois de jantar, nos anos 90, raramente nos dávamos por vencidos antes das 3 da manhã.
Conhecemo-nos na Faculdade de Letras de Lisboa, no final da década de 60. O Emídio frequentava o Curso de Filologia Românica. Do seu grupo de afinidades intelectuais e politicas alguns membros vinham de Santarém, em cujo liceu ele estudara. Nasceu em Alcanena, numa família ligada à indústria de curtumes. A tropa, em Angola, interrompeu-lhe os estudos e condicionou-lhe ou marcou-lhe, como a quase toda uma geração, percursos e visões do mundo. Perdemo-nos o rasto. Só nos voltamos a encontrar, 20 anos mais tarde, nas Caldas da Rainha.
Integrando desde Março de 1989, a Comissão Instaladora da Escola de Arte e Design, criada por decreto publicado em Dezembro do ano anterior, tive o prazer de propor a admissão do Professor Emídio Ferreira no corpo docente da Escola, logo no ano seguinte. Fez pois parte do primeiro núcleo de professores da ESAD, aquele que, com a Comissão Instaladora, acompanhou as negociações para a definição dos Cursos iniciais, discutiu os respectivos planos curriculares, planeou o primeiro ano lectivo e preparou a primeira versão do Programa Preliminar que deveria servir de base ao lançamento de um concurso para dotar a instituição de edifício próprio. Foi o responsável pela cadeira de História da Arte e da Cultura que começou a funcionar no ano lectivo de 1990/91.
O Professor Emídio Ferreira após conclusão da sua licenciatura, passara pelo ensino secundário, rumara a Itália, desempenhando as funções de Leitor de Cultura Portuguesa na prestigiada Universidade de Veneza, e obtivera o grau de mestre em História de Arte, na Universidade Nova de Lisboa, salvo erro numa das primeiras edições do Curso de Mestrado criado sob a égide do Professor José-Augusto França.
Deixei a direcção da ESAD em Março de 1991, mas a experiência gratificante e intensa do verdadeiro processo de instalação dos dois anos anteriores deixou em todos os que nela participaram marcas profundas. Fora um tempo de projecto discutido, de desenho participado, de debate aprofundado e sem limitações, de confronto de experiências e perspectivas, de construção. Foi essa experiência que permitiu ao Prof. Emídio Ferreira enfrentar com resiliência um doloroso e injusto afastamento da Escola a que se dedicara com empenho e competência. Nesse período, felizmente resolvido com uma reorientação pacificadora da direcção da ESAD, a nossa convivência foi revigorada, alimentada aliás por novos projectos de intervenção educativa e profissional.
Quando eu próprio regressei à ESAD, no quadro agora de uma vinculação efectiva, o Professor Emídio Ferreira já nela reassumira as funções docentes. Quando fiz as minhas provas para professor adjunto, em Junho de 2004, coube-lhe arguir, com a isenção e proficiência, a minha dissertação, o que para mim só constituiu, além de um prazer, um acrescido motivo de estímulo. Por essa época, Emídio Ferreira tomara a decisão de passar a residir nas Caldas da Rainha, tendo adquirido uma casa no centro histórico, que recuperou de forma exemplar e decorou com o bom gosto que o caracteriza (com a cumplicidade “militante” da Isabel Tomé, evidentemente).
Este depoimento não é uma biografia, nem sequer um testemunho circunstanciado de alguém que tem tido o privilegio de aceder à intimidade de Emídio Ferreira, beneficiar e devolver a sua solidariedade. É sobretudo um pequeno gesto público, uma chamada de atenção para um professor que foi – e continua a ser - muito importante na vida de uma Escola que ocupa um lugar méritório no panorama do ensino artístico e do design.
É uma homenagem sentida a um amigo de múltiplas andanças, e a manifestação de um voto preocupado. E este voto é o de que a Escola, com a qual tão generosamente se envolveu, o não esqueça neste ciclo em que se comemoram duas décadas de existência, e de que a cidade, que adoptou para residência, saiba nele despertar o desejo de colaborar em iniciativas para as quais a sua formação e gosto o recomendam superiormente.
Gaivotas em Araduca
No seu "obrigatório" blogue Memórias de Araduca, António Amaro das Neves regista fotograficamente a presença, aqui também referida, do casal de gaivotas no espelho de água em frente da escola Francisco de Holanda, onde lccciona, e nas imediações da sede da Sociedade Martins Sarmento, a que preside. Graças à explicação adicional que nos faculta, ficamos a saber que estas aves marinhas já arribavam em meados do século XIX a algumas freguesias do concelho de Guimarães.
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Culinárias
Interesso-me pelo tema da história dos alimentos e da alimentação, uma forma de aproximação à história da sociedade e da cultura. Aliás a partilha de alimentos, na forma como são confeccionados, nos rituais que regem a refeição, constituem o teste porventura mais definitivo da capacidade de aceitar o outro, com a sua história e a sua natureza. Sabemos como passa pela mesa uma das maiores dificuldades de integração de alguém numa sociedade de acolhimento. O meu amigo José Manuel Sobral que estudou a reprodução social numa aldeia beirã, contava como as longas conversas travadas à mesa da taberna, bebendo um vinho que o seu estômago teimava em considerar inaceitável, só foi possível graças à cumplicidade do Guronsan, um instrumento de trabalho imprescindível de qualquer antropólogo em trabalho de campo.
Cresci num meio onde a variedade e sofisticação da alimentação eram reduzidíssimas. O mundo camponês oestino nos anos 50 era demasiado pobre e dependente dos alimentos que podia cultivar em pequenas courelas junto à sua habitação para poder desenvolver uma culinária requintada. Os produtos frescos do mar chegavam em alguns Domingos, depois da missa, e limitavam-se a sardinhas, carapaus e chicharro. Nem toda a gente podia matar um porco, que fornecia carne, gordura, enchidos para uma família para todo o ano. A carne de vaca estava praticamente ausente da dieta camponesa. Comer galinha era privilégio de doentes e o coelho, invariavelmente com arroz, um alimento de dias de festa. A alimentação diária básica girava em torno das couves, das batatas, do feijão, da massa e do pão, a que se podia juntar uma sardinha de salmoura ou um bocado de toucinho de porco. Por isso, quando alguém oferecia ao visitante parte da sua refeição habitual, a melhor compensação que poderia esperar obter era uma expressão de agrado irreticente pela comida e respectiva confecção. Elogiar a comida que nos oferecem, apreciar a forma como foi confeccionada é uma prova de respeito pessoal e social por quem a fez.
A experiência diz-me porém que é difícil vencer a resistência perante a comida que não se conforma com os nossos padrões habituais. O paladar, o olfacto, a vista são muito segregacionistas e o estômago não é tolerante nem aberto à inovação. Pelo contrario, desconfia e recusa mais facilmente do que se entrega, e não valoriza a diferença.
A único antídoto ao conservadorismo excludente do nosso paladar é a curiosidade pelas culturas com que estabelecemos contacto, o gosto pelo conhecimentos dos ingredientes e modos de confecção e o respeito pelo trabalho de concepção e execução dos cozinheiros. Se se tratar de uma culinária tradicional e popular, uma boa inspiração, nesse caso, é pensar nos pratos que as nossas mães e avós cozinhavam para dar de comer aos seus ranchos de descendentes. Esta memoria pode ajudar-nos a sermos mais entusiásticos com comidas simples e pouco sofisticadas, mas preocupadas com a identidade da origem dos seus componentes.
Cresci num meio onde a variedade e sofisticação da alimentação eram reduzidíssimas. O mundo camponês oestino nos anos 50 era demasiado pobre e dependente dos alimentos que podia cultivar em pequenas courelas junto à sua habitação para poder desenvolver uma culinária requintada. Os produtos frescos do mar chegavam em alguns Domingos, depois da missa, e limitavam-se a sardinhas, carapaus e chicharro. Nem toda a gente podia matar um porco, que fornecia carne, gordura, enchidos para uma família para todo o ano. A carne de vaca estava praticamente ausente da dieta camponesa. Comer galinha era privilégio de doentes e o coelho, invariavelmente com arroz, um alimento de dias de festa. A alimentação diária básica girava em torno das couves, das batatas, do feijão, da massa e do pão, a que se podia juntar uma sardinha de salmoura ou um bocado de toucinho de porco. Por isso, quando alguém oferecia ao visitante parte da sua refeição habitual, a melhor compensação que poderia esperar obter era uma expressão de agrado irreticente pela comida e respectiva confecção. Elogiar a comida que nos oferecem, apreciar a forma como foi confeccionada é uma prova de respeito pessoal e social por quem a fez.
A experiência diz-me porém que é difícil vencer a resistência perante a comida que não se conforma com os nossos padrões habituais. O paladar, o olfacto, a vista são muito segregacionistas e o estômago não é tolerante nem aberto à inovação. Pelo contrario, desconfia e recusa mais facilmente do que se entrega, e não valoriza a diferença.
A único antídoto ao conservadorismo excludente do nosso paladar é a curiosidade pelas culturas com que estabelecemos contacto, o gosto pelo conhecimentos dos ingredientes e modos de confecção e o respeito pelo trabalho de concepção e execução dos cozinheiros. Se se tratar de uma culinária tradicional e popular, uma boa inspiração, nesse caso, é pensar nos pratos que as nossas mães e avós cozinhavam para dar de comer aos seus ranchos de descendentes. Esta memoria pode ajudar-nos a sermos mais entusiásticos com comidas simples e pouco sofisticadas, mas preocupadas com a identidade da origem dos seus componentes.
domingo, 6 de junho de 2010
Identificação
A minha avó materna sempre achava que mudar de cidade era basicamente mudar de águas. No fundo, a melhor água era a da sua terra – Setúbal – e a estranheza perante a alternativa tinha várias formas de se manifestar. Desde a roupa que não ficava tão branca (por causa do calcário, dizia), até ao metabolismo visceral (que se recusava a trabalhar com água tão férrea). A sopa perdia todas as qualificações se feita com água das Caldas e café nem pensar (mais valia trazer um garrafão de água do local de origem para garantir o cheiro e o sabor desse produto essencial à vida logo pela manhã). A pele da cara e dos braços ficava mais seca e o cabelo mais crespo com a agua caldense. Em contrapartida era frequente ouvir os meus avós paternos tecerem considerações sobre a singularidade da água que brotava de uma mina na Quinta das Laranjeiras, e que a tornava superior a toda e qualquer água que se apresentasse em concorrência.
Há dias em Guimarães ouvi o proprietário de um restaurante, perante o meu elogio da comida ali confeccionada, responsabilizar a água da cidade pela qualidade ímpar dos seus pratos. A sua convicção pareceu-me sincera. Não ousei, evidentemente, pedir mais esclarecimentos sobre as especificidades da sua receita de arroz de pato.
Há dias em Guimarães ouvi o proprietário de um restaurante, perante o meu elogio da comida ali confeccionada, responsabilizar a água da cidade pela qualidade ímpar dos seus pratos. A sua convicção pareceu-me sincera. Não ousei, evidentemente, pedir mais esclarecimentos sobre as especificidades da sua receita de arroz de pato.
sábado, 5 de junho de 2010
Gaivotas, melros
Há dias, enquanto esperava que abrisse o sinal verde nos semáforos em frente da Escola Francisco de Holanda, em Guimarães, reparei que no pequeno lago do separador central uma gaivota debicava uma cabeça de peixe. Não consegui perceber se se tratava de peixe de mar ou de água doce, mas não tive dúvidas de que se tratava de uma gaivota. Guimarães fica a muitos quilómetros da costa, pelo que o facto me surpreendeu.
Um pássaro que também se apropriou das cidades foi o melro. Quando eu era miúdo, o meu avô sempre me prometia um bónus por cada melro que eu capturasse, mas não me recordo de ter muito êxito nessa operação. Animal esquivo, não deixava ninguém aproximar-se e permanecia atento a qualquer movimento ou ruído suspeito, que pressentia com grande acuidade. Nunca imaginei que ainda o veria nos jardins e quintais das cidades debicando canteiros e saltitando lesto pela relva como se de um pássaro urbano se tratasse.
Um pássaro que também se apropriou das cidades foi o melro. Quando eu era miúdo, o meu avô sempre me prometia um bónus por cada melro que eu capturasse, mas não me recordo de ter muito êxito nessa operação. Animal esquivo, não deixava ninguém aproximar-se e permanecia atento a qualquer movimento ou ruído suspeito, que pressentia com grande acuidade. Nunca imaginei que ainda o veria nos jardins e quintais das cidades debicando canteiros e saltitando lesto pela relva como se de um pássaro urbano se tratasse.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Bruxos
Mesmo à entrada das Caldas, na estrada de Santa Rita, numa residência solitária, estabelecera-se um bruxo. Misto de videntes, homeopatas, psicólogos, conselheiros, espécie de enfermeiros de corpos e almas, os bruxos eram essenciais à vida urbana e rural das classes médias ou desfavorecidas. Toda a gente, num momento de particular desorientação, de medo, desespero ou simples inquietação ou dúvida tinha recorrido uma vez aos seus serviços. Apesar da marginalidade do seu estatuto, da desautorização que a Igreja e a Medicina lhes dispensavam, os bruxos mereciam crédito generalizado, a sua palavra era tida em consideração e respeito.
Contava a minha mãe que a Tia a tinha convencido uma vez a ir a esse bruxo de Santa Rita. Foi quando ficou grávida do seu primeiro filho. Queria saber se era menina ou menino, informação que nesse tempo só mesmo os bruxos podiam fornecer. Inquirido sobre o sexo do nascituro, o bruxo teria proferido a seguinte frase: “É menino, não menino!”. Acertou! - disse a minha Tia mal se soube que era portador dos atributos masculinos o ser que o Dr. Vieira Pereira ajudara a vir ao mundo. Mas a minha mãe sempre ficou convencida que a frase rebuscada do infalível bruxo escondia uma escapatória. Em caso de desacerto, ele sempre podia invocar um erro de percepção. “O que eu realmente disse foi é menina, não menino”.
Contava a minha mãe que a Tia a tinha convencido uma vez a ir a esse bruxo de Santa Rita. Foi quando ficou grávida do seu primeiro filho. Queria saber se era menina ou menino, informação que nesse tempo só mesmo os bruxos podiam fornecer. Inquirido sobre o sexo do nascituro, o bruxo teria proferido a seguinte frase: “É menino, não menino!”. Acertou! - disse a minha Tia mal se soube que era portador dos atributos masculinos o ser que o Dr. Vieira Pereira ajudara a vir ao mundo. Mas a minha mãe sempre ficou convencida que a frase rebuscada do infalível bruxo escondia uma escapatória. Em caso de desacerto, ele sempre podia invocar um erro de percepção. “O que eu realmente disse foi é menina, não menino”.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Identificação
Na década de 80, um amigo meu que tinha uma agencia de viagens nas Caldas da Rainha, resolveu expandir o negocio na região. Depois de uma prospecção de mercado, decidiu abrir uma sucursal em Torres Vedras. De modo que, na zona histórica da cidade, a Montaltur (nome fictício) passou a dispor de um balcão aberto ao público. Durante dias e dias, apesar da curiosidade que o novo estabelecimento despertou entre os torrenses, nomeadamente os que viviam ou passavam habitualmente naquela rua, nem um só franqueou as suas portas para se interessar pelos produtos turísticos anunciados na montra. Ao fim de um mês, uma senhora mais afoita, assomou à porta da Montaltur Torres Vedras e, sem entrar, perguntou para a empregada ao balcão: «Diga-me uma coisa menina, os senhores donde são? São cá do Oeste?»
Investigando a lista telefónica era então possível detectar a progressão do palavra Oeste na denominação de empresas em toda a região. A maior parte situava-se exactamente em Torres Vedras, de onde o nome irradiava em círculos concêntricos, com frequência cada vez menor. Nos limites, os tecidos empresariais de Lisboa e Leiria praticamente ignoravam a designação.
Investigando a lista telefónica era então possível detectar a progressão do palavra Oeste na denominação de empresas em toda a região. A maior parte situava-se exactamente em Torres Vedras, de onde o nome irradiava em círculos concêntricos, com frequência cada vez menor. Nos limites, os tecidos empresariais de Lisboa e Leiria praticamente ignoravam a designação.
quarta-feira, 2 de junho de 2010
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