O património permite-nos cartografar a cidade, com uma cartografia afectiva e culta. Mas ele não é o único elemento dessa cartografia, e não pode ser concebido como o elemento imutável. O património vive, mas não tem vida própria. Produz valores, é certo, mas é o contexto que os explicita e os projecta.
A memória de uma cidade está nos seus museus, mas tem de estar também nas suas ruas, praças, mercados, fachadas, gente. Nas suas esquinas. “A cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, em cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes” (Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, Lisboa, 1997).
A memória de uma cidade não pode viver do efémero comemoracionista ou do album de fotografias. A memória de uma cidade é um contínuo de gerações, em que cada uma herda e acrescenta à herança o seu próprio sonho, o seu próprio desejo de futuro. A memória e o património são um elemento do metabolismo das cidades, não um entrave ao progresso.
Usando uma linguagem pedida de empréstimo ao Padre António Vieira, diria que o passado contém profecias sobre o futuro. À medida que elas se cumprem, o que era promessa torna-se realidade, ou seja “discurso e boa razão”. O "discurso e boa razão" lança nova luz sobre o passado, dispensando a fé como critério de adesão. “Até agora” - pregava o jesuíta à côrte da Restauração, em 1642, dois anos após a recuperação do trono por uma linhagem portuguesa – “era necessária pia afeição para dar fé às nossas profecias, mas hoje basta o discurso e boa razão, porque os efeitos presentes das passadas são novas profecias dos futuros” (Sermões, I, edição Sá da Costa).
É por isso que não há cidade histórica sem cidade imaginária. A cidade imaginária é dinâmica, porque reflecte, é reflexiva não é um puro reflexo.
Uma cidade é um cruzamento de gerações e de espíritos, espíritos de lugar. Por isso é que a sua riqueza se alimenta do imaginário.
O património é sobretudo um produtor de imaginário. Não podemos prescindir dele, é ele que ajuda a criar o nosso futuro. Deixa-nos mais livres, resolve-nos as questões da herança e do seu peso, porventura excessivo, se o não soubermos seleccionar e adaptar. Temos que saber lidar com o património para podermos mudar, e mudar bem.
A cidade imaginária baseia-se no conhecimento. Desoculta o passado que parecia escondido, sepultado, e considera-o digno de compreensão e vida. Torna menos nebuloso o futuro, ao qual procura transmitir claridade e, afinal, sopro, inspiração, por um lado, continuidade e segurança, por outro.
Siegfried Lenz, no seu célebre romance Heritage, refere-se à terra natal, não como o lugar onde estão enterrados os nossos antepassados, mas como o lugar onde lançamos as nossas raízes. Elas podem ser produto da imaginação. “Para te ajudar a compreender isto tudo" - diz Ziegmunt Rogalla, retido na cama do hospital, em consequência das queimaduras recebidas durante o fogo do Museu histórico masuriano, ao jovem que o escuta - "para te ajudar a compreender tudo isto pede à Henrike que te fale da nossa pátria. A terra natal pode ser um sítio onde nunca tenhas ido, nota bem. No caso dela, criou muitas imagens a partir da imaginação e de informações que recolheu. Talvez tenha uma visão mais pura do que nós, os velhos que lá vivemos”.
Sem a cidade imaginária, fica a cidade material, a que se vê, a horrível cidade triste e decadente, pequenina e onde todos se vêem a todos. Ora nós precisamos, como escreveu Paulo Cunha e Silva nas suas crónicas do Diário de Notícias (2003), da cidade onde somos espírito, onde nos podemos encastrar, desaparecer sem ser vistos, apesar de podermos (e gostarmos de o ser) reconhecidos.
A cidade imaginária é a cidade que pensa sobre si própria, que reflecte sobre a sua identidade, sabendo que o que foi não é o que será, embora faça parte do que pode vir a ser.
A cidade imaginária é a cidade que se alimenta, não da contemplação mas do diálogo com os outros, os de antes e os de agora, cidade que não se limita a responder a situações, mas as antecipa.
A cidade imaginária não tem medo de interrogar os outros, de estabelecer laços com outras cidades, de criar um vaivem, de se confrontar com a diversidade. A cidade imaginária é uma cidade aberta, porque não ficou prisioneira de si mesma, não se deixou manietar pela tradição, nem alienar pelo folclore.
A cidade imaginária é uma cidade de cultura. Onde a cultura não é parente pobre que só se senta à mesa em dias especiais, mas um parceiro leal, credível, de todos os dias. A cultura permite-nos ver para além de nós e da nossa pequenina circunstância. Olhamos de outro ponto, para dentro e para fora. Ganhamos dimensão, desejo, escala, superamo-nos. Pela cultura garantimos generosidade, única arma contra a mesquinhez, falta de visão e de ambição.
A cidade imaginária é a que tira partido das raízes, da memória genética, que a desenvolve, que inova, que refaz os desígnios e alicia os protagonistas para a sua partilha.
A cidade imaginária repudia a indiferença e a resignação, não se importa de correr riscos, de perturbar, de acrescentar, de ousar, de marcar presença.
A cidade imaginária é aquela em que “os vivos pedem para depois de mortos um destino diferente do que lhes calhou” (Italo Calvino, outra vez). Mas para isso têm de reconhecer a cidade em que viveram.
Quando virámos costas à cidade histórica, construímos uma outra cidade, mais individualista, mais hedonista, mais indiferenciada, mais agressiva, menos apropriável.
A cidade imaginária é democrática, é toda a cidade e não a cidade dos poderes, sejam eles técnicos ou políticos. É a cidade onde todos participam no problema e todos participam na solução.
É uma cidade de pessoas, não de objectos.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
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11 comentários:
Uf!... De um manifesto se trata sem dúvida... dos mais sentidos e genuínos que me foi dado ler até hoje!
Tanto que há aqui para comentar...
Limito-me a questionar, impressionada, sob a primeira impressão: Que estado de espírito é este por trás destas palavras? Que conduziu o João a sentir, a pensar, a dizer assim? De um modo tão diverso?
Magnífico! Inspiradíssimo! Para guardar num lugar muito especial de cada uma das nossas memórias!
- Isabel X -
Um lindo texto. Ao lê-lo apercebo-me das pequenas conversas que na aprendizagem do quotidiano moldaram as opiniões que tenho hoje sobre as cidades.
Livra! O meu amigo não faz por menos… excelente manifesto sobre a cidade mas que, quanto a mim, enquanto o lia, ia adaptando e, no nosso caso português, substituía a palavra cidade por País que cada vez é menos conhecido pelos jovens de hoje tal a maneira como ele tem sido diluído na Europa ao ponto de mais parecer uma província europeia.
Seria pois necessário ensinar o País aos portugueses, sua história quase milenar e que apesar de momentos de débil orgulho, e atravessamos um deles, muito nos deve orgulhar elevando-o a níveis mais consentâneos com o nosso espírito e chama criativa: Um País, uma cidade, um individuo para saber quem é precisa de saber donde veio e para onde vai.
Para sabermos quem somos precisamos de saber a nossa história e esse saber deve começar logo nos primeiros bancos da escola e ao longo desta aprendermos como começou já que é, por enquanto, muito dúbio saber para onde vamos.
Obrigada João :-)
O fato de observar, analisar e formalizar as necessidades das pessoas e dos lugares, caracteriza o singular potencial a qual o Prof. João nos contempla, avaliando a questão, adverti a consciência de um patamar histórico adequado aos desafios da atualidade.
Expressa uma grande didática esta Cidade Imaginária, refletindo o seu domínio de conhecimento pelas causas de uma cultura humanitária.
Notadamente um pensamento divisor de águas, que contribui para esclarecer, desenvolvendo um ponto educativo nas relações de uma coletividade.
A Cidade Imaginária vive no fundo de todos nós. Por vezes é um mito não revelado, outras um desejo profundo, outras ainda um convite à acção.
A busca de nós mesmos passa pelos locais que habitamos, locais que nos violentam ou pelos quais somos violentados, locais que amamos, mas passa sobretudo pela tentativa de encontrarmos um espaço de realização pessoal e social.
O Manifesto de João Serra incarna tudo isto e uma busca permanente e consequente pela identificação da pessoa humana com o seu meio.
O João Serra tocou uma questão que se nos põe e ao mundo que nos rodeia. E a constatação do que temos e do que queremos é terrivelmente bela.
Obrigado João.
Magnífico!
Abraço
VT
Como bom é bom imaginar e sentir as cidades. A sua descoberta é permanente e estimulante. Este texto, como as cidades, transporta segredos e sentimentos que eu vou querer explorar. Obrigado
Fico-lhe, de novo, muito obrigado por este artigo. Não pára de crescer a minha dívida externa.
Obrigado, João.
Algumas vezes não me manifesto, mas sabes que estarei sempre a teu lado, a nossa amizade nasceu e será sempre esse o meu lema.
Um abraço amigo do
João Ramos Franco
PS.:O computador esteve avariado até ontem.
Vou guardar este texto, João.
Lindo, mesmo. Como seria bom que todos o lessem!
Um beijo
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