Peço ao meu amigo Vitor Vladimiro Ferreira licença para, neste dia dos 135 anos de vida da criatura mais emblemática de Rafael Bordalo Pinheiro, transcrever um texto com que ele honrou, há alguns anos, o catálogo de uma exposição que em 2005 assinalou a passagem do centenário da morte do ceramista e ilustrador [Rafael Bordalo Pinheiro e a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (1884-1905)]
Pareceria mal, nesta lenga-lenga bordaliana não falar no “Zé Povinho”, figura que há cem anos se instalou no nosso imaginário, mesmo que hoje essa imagem rural, broeira, bronca, e falsamente aparvalhada, venha sendo maquilhada pela influência da TV, pela circulação de turistas e de emigrantes, até pelo aburguesar fomentado pela globalização, mesmo que o país continue carente de melhorias culturais e sociais.
Depois, verdade é que se a personagem se foi aperaltando, alguns dos valores que representava continuam vigorosos: ainda rosna entre dentes - também em voz alta, pelo telefone e pela escrita - que as culpas são todas “deles”; enche o peito, pronto a regougar com muito palavreado soez; dá-se pouco a livros e ao estudo; ama a canção popular e urbana que é o Fado lisboeta, continua a tornear com habilidade os espinhos do quotidiano, a ser desconfiado e estatisticamente xenófobo; e gosta do bom prato, ainda que não destrinçando qualitativamente entre cozidos, grelhados, guisados e assados, desde que bem regados com o nacional sumo de uva.
O nervo da modernidade, no entanto, leva as camadas mais jovens a emborcar mais cerveja do que “tinto”, a espraiar-se nas areias atlânticas, a ter gosto pelas viagens por cá e por aí fora; a perder-se pelo futebol – um desporto que nascido aristocraticamente em Inglaterra se mundializou, atravessando democraticamente as classes sociais -, a regalar-se com as estrangeiras que “turistam” ao nosso Sol, enfim, todos os bons motivos, para além dos políticos, que proporcionariam a Bordalo Pinheiro, se ainda por cá andasse, continuar a escalpelizar a nossa sociedade.
sábado, 12 de junho de 2010
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18 comentários:
O que eu acho graça é que ninguém se inclui na descrição que faz da personagem. Quem emite opiniões judicativas sobre a perenidade, a modernização, o aburguesamento do Zé Povinho nunca é um deles.
É sempre alguém à parte, que passou incólume e sereno por essas pseudo transformações que apenas atingem e mal distinguem a turba que os autores confessos de lengas-lengas contemplam do Alto, do Olimpo onde se encontram instalados, segundo o seu próprio imaginário.
Porque será que Zé Povinho nunca "somos nós"? nunca "sou eu"? são sempre "os outros"? "o outro"?
- Isabel X -
Isabel X, desconheço tal personagem em questão.
Mas, seu comentário é
tão consciente,
tão honesto,
tão singular, e por que não dizer realista.
Fico feliz, Cláudia, por ter sido esse o estado de espírito que captou do meu comentário. É o que chamo "diálogo de consciências"...
Sempre sensível e atenta, a Cláudia!
Muito grata,
- Isabel X -
Mas o boneco criado por B. Pinheiro, nem isso é: é o retrato fiel do que, desgraçadamente, o luso indígena continua a ser - só que agora, na era do redentor "telemóvel" (termo absurdo em qualquer língua de gente civilizada), de um modo mais evidente.
Será que Chantre dispensa telemóvel? Chamar-lhe-á outro nome mais adequado quando é ele a usá-lo? Ou supõe que o usa de um modo mais sofisticado do que o "luso indígena"? O tal que "é o retrato fiel" do "boneco" que afinal "nem isso é", criado por Bordalo Pinheiro no século XIX?
Já viu a incongruência, a impossibilidade das desencontradas asserções que defende com tão altiva displicência?
Mais um exemplo, afinal, a confirmar a tese que defendi no meu comentário anterior. Talvez lhe devesse agradecer por isso, por assim me vir dar razão uma vez mais.
Limito-me a lamentar que não consiga ver no próximo (no "outro" como agora se diz) algo um pouco mais elevado porque os olhos são o "espelho da alma"... e, em última análise, o que vemos nos outros é o que mora em nós...
- Isabel X -
Chantre, você se ateve à apenas uma das possíveis variáveis da reflexão e da complexidade que Isabel X nos agraciou.
Infelizmente, temo que no seu caso, o mundo ofereça mais do que possa captar.
Não é bem isso, cara Isabel. Na verdade, o Zé do Manguito - esse retrato perfeito do que de pior têm os "portugueses" (prefere assim? Que há de incorrecto com o termo "luso indígena"? Olhe que até soa bem, tem uma sonoridade "alternativa" e um cheirinho "etno" muito do agrado do ar do tempo... E de onde pôde inferir que me coloco de fora? Lei-a melhor, por favor)passou directamente da sachola para o mais sofisticadíssimo "telemóvel" -um curto circuito tecnológico de antologia, convenhamos!
Já agora; tente mostrar-me que "objecto susceptível de ser movido de longe", propriamente "telemóvel", pode significar um "aparelho móvel que permite falar a distância". Não encontra tal aberração semântica em qualquer outra língua. Até os nossos amigos brasileiros conseguiram furtar-se a tão gritante absurdo com a elegante e correcta proposta do "[telefone] celular".
Mas tente.
Ganha um doce.
Cumprimentos.
Não me devia ter respondido só a mim, Chantre, e ainda mais para me oferece um doce. Como me conhece, sabe que eu não como doces; como eu não sei quem é Chantre, como resolveria o "problema" de mos fazer chegar às mãos? Ou oferecer-mo-ia através deste blogue? De facto, "desses" doces virtuais talvez possa "comer".
Repare antes no que lhe diz Cláudia, reflicta sobre isso, isto é, que talvez "o mundo ofereça mais do que possa captar". Já viu o desperdício: é que o mundo é este e a vida é uma, a sua.
Mudando de registo:
Qual Zé Povinho, qual quê? Ainda hoje foram sete a zero e o Dr. Soares esteve inspiradíssimo, falando de Portugal e dos portugueses, "dando cartas", no debate Prós e Contras.
Ainda há portugueses em Portugal!
Tenho andado meio "zangada" com ele, mas na hora da verdade, qualquer coisa em mim sempre o distingue, ao Dr. Mário Soares!
- Isabel X -
Pois, cara Isabel X, a sua glorificação do "Zé o Manguito" por via futebolística, na África austral, ou soarista, no programa "Prós e Prós" (...a que a sua bonomia trata de chamar "Prós e Contras"),poderia, apenas, revelar que não entendeu o que representa o mesmo Zé - mais uma distracção sua, por certo, porque a sua vigilância nem sempre baixa os braços.
Quanto ao "doce" e ao problema da sua expedição, estamos conversados: demitiu-se de o merecer ao recusar-se a responder ao meu desafio.
A "nossa" Cláudia, que apenas a Isabel X convoca, escreve uns comentários muito bonitos, onde se adivinha uma transatlântica sonoridade poética; mas aquele a que a Isabel alude, onde não me reconheço porque sem suporte no comentário que primeiro fizera, sugere a possibilidade de uma omniscência a que eu, pobre mortal, nunca poderia aspirar. Outros comentadores o conseguirão, por certo...
Quanto ao pendente, não: sem ser de modo irónico, nunca digo ou escrevo "telemóvel"; "telefone" ou "telefone móvel" dizem com rigor o que pretendo significar.
Sinceros cumprimentos, desejando honestamente que os seus superlativos louvores ao Zé do Manguito - que, sabe-se lá como, tratou de vestir de "navegante" - não diminuam de intensidade depois de sexta-feira. :-)
Pois é, tem razão, Chantre! Eu só mereceria o doce se explicasse o telemóvel. Então tinha o problema resolvido à partida, não era?
Lá está mais uma característica do Zé Povinho, segundo dizem: alguma malícia nas promessas que faz!
Por mim, está tudo certo...
Vou confessar-lhe (mais do que) um segredo, um pecado: gosto de Portugal, dos portugueses!
Mas não gosto do "Zé Povinho" e da função que por cá tem desempenhado.
Mais ainda: não me considero portuguesa por ter nascido em Portugal. Considero que nasci em Portugal por ser portuguesa.
- Isabel X -
Como sempre, Isabel X tolerante e delicada, dilatando seu verbo em prol de sentimentos arrefecidos.
Meus cumprimentos por sua elegância portuguêsa.
Malícia, Isabel X? Onde descortinou sinal de malícia no meu oferecimento? Tratou-se de em desafio que, sabia-se à partida, a X não poderia ganhar.
Malícia, Isabel X? Onde foi Vc agora desencantar tal possibilidade nessa perfeita quinta essência do "luso indígena", perdão, do homem português? Nova desantenção, de novo aposto, já que não acredito no seu súbito cepticismo relativamente ao boneco: o Zé Povinho, a julgar pela apologia que de si tem merecido, seria incapaz de tal velhacaria...
Quanto a pecados, confesse os que quiser, sou todo orelhas; segura fique, porém, da minha ilegitimidade para lhos absolver - eu que não quereria, cinicamente, afiançar-lhe que o principal problema de Portugal, mais que a madrasta Natureza, são, precisamente, os portugueses.
Há quase 900 anos, aliás.
Quero agradecer uma vez mais à Cláudia!
Bem dizia Fernando Pessoa que "a minha pátria é a língua portuguesa". Daí a clarividência com que nos escutamos mutuamente, eu e a Claudia.
Quanto ao Chantre, direi apenas que me magoa profundamente que alguém use palavras portuguesas para falar assim dos portugueses, ou seja, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus filhos, se os tiver...
Aliás, já reparou que está a falar de si mesmo?
- Isabel X -
Que devo concluir da sua ressentida (quase agressiva)observação, cara Isabel X:
a) que não sabe distinguir uma proposta condicional de um enunciado categórico?
b) que só temos de nos orgulhar de tudo o que fizemos ao longo dos tempos?
c) que devemos continuar a desrenponsabilizar-nos de todos os nossos fracassos (não haverá alguns?) e, à boa maneira do Zé do Manguito, numa atitude que acima reprovou, lançar o ónus dos mesmos apenas sobre o "outro" (chame-se-lhe castelhano, judeu, jesuíta, Igreja Católica, "fascismo", Maçonaria, Opus Dei, "o " Bush, especuladores financeiros, etc.)?
Parece muito patriótico e rende excelentes dividendos; mas é menos digno. E, quase sempre, perigoso.
Sinceros cumprimentos.
Já que me dá a escolher, escolho a hipótese a)...
...mas com a ressalva de que nada de mais categórico do que certo tipo de propostas condicionais, como é o caso.
Nada do que diz para além disso me merece resposta porque nada tem a ver com o que fora dito antes.
Na sua ânsia de ter sempre razão, constrói um arrazoado só seu, que já não é céptico, nem cínico, nem agressivo, nem malicioso, nem nada passível de classificação.
Além disso, hoje em dia, ninguém tira dividendos por invocar a pátria, nem isso lhe rende nada: muito pelo contrário.
Mas, ao contrário do que diz, é sempre muito mais digno...
- Isabel X -
Cara Isabel X
Não tenho, nunca tive, vergonha dos meus pais ou dos meus avós. E se, sobre o patriotismo, considero excessiva arrogância pedir-me meças, relativamente à responsabilidade pelo que de menos bom temos conseguido, mantenho a convicção de que invectivar os outros pelos nossos fracassos é menos engrandecedor.
De resto, pelo menos uma vez, tente ler o que realmente escrevi - faríamos excelentes progressos!
Cumprimento-a
Apenas, lembrando.
"As batalhas mais invencíveis são as do entendimento; por que onde as feridas não tiram sangue nem a fraqueza se vê pela cor, nenhum sábio se confessa vencido".
Pe. Antônio Vieira
o ze povinho continua o mesmo mas agora na era digital..... o autor do texto não deixou devendo nada ao original personagem mas sim deu uma acrescentada
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