Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp está condensada da numa frase muito citada: “o espectador faz o quadro”. Manifestada com tão insolente precisão, parece negar a existência da obra de arte e proclamar um niilismo ingénuo. Num texto breve publicado em 1957 (“O processo criador”), clarifica um pouco a sua ideia. De acordo com esta nota, o artista nunca tem plena consciência da sua obra: entre as suas intenções e a respectiva realização, entre o que quer dizer e o que diz a obra, há uma diferença. Essa ”diferença” é, na realidade, a obra de arte. O espectador não julga o quadro pelas intenções do seu autor, mas pelo que realmente vê; esta visão nunca é objectiva: o espectador interpreta e “refina” o que vê. A “diferença” é transformada noutra diferença, a obra de arte noutra obra de arte. Do meu ponto de vista, a explicação de Duchamp não dá conta do acto ou processo criador em toda a sua integridade. É verdade que o espectador cria uma obra de arte distinta da imaginada pelo artista, mas, entre uma e outra, entre o que o artista quis dizer e o que o espectador julga ver, há uma realidade: a obra. Sem essa realidade é impossível que se dê a recriação do espectador. A obra faz o olho que a olha – ou, ao menos, é um ponto de partida: o espectador inventa outra obra a partir dela e por causa dela. O valor de um quadro, de um poema ou de qualquer outra criação artística mede-se pelos signos que nos revela e pelas possibilidades que contém de os combinarmos. Uma obra de arte é uma máquina de significar. Neste sentido, a ideia de Duchamp não é inteiramente falsa: o quadro depende do espectador porque só ele pode por em movimento o aparelho de signos que é toda a obra de arte. Nisto reside o fascínio do Grande Vidro e dos ready-made: um e outros reclamam uma contemplação activa, uma participação criadora. Fazem-nos e nós fazemo-los.
Octavio Paz, Apariencia desnuda. La obra de Marcel Duchamp. Madrid, Alianza Editorial, 2008. p. 98-99.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
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4 comentários:
Muito interessante.
Um amigo de Jasper Jones, penso que médico, pintou nos anos 50 um quadro chamado "South", em que se vê uma velha mansão sulista ao pôr do sol, rodeada por soldados confederados feridos e exaustos.
O quadro adquiriu alguma notoriedade pela forma como sugeria o desânimo e a derrota ao fim do dia, e da Guerra, e foi transaccionado, como genial símbolo sulista, por quase meio milhão de dólares na década de 70.
Numa carta dirigida à irmã, e divulgada após a sua morte, o artista, de quem só se conheciam mais duas ou três obras menores, confessa que tinha pintado (não muito bem...) a sua recordação dos fins de tarde em casa dos avós, com miúdos a brincar e os avós e pais estendidos na relva, gozando o fresco que o pôr-do-sol trazia àqueles dias tórridos de Verão.
JJ
É natural. Cada um procura ver-se, procura encontrar-se, procura-se, naquilo que vê, naquilo que lê, naquilo que ouve...
Como somos diferentes, e essa diferença é criativa, cada um "faz", enquanto espectador o quadro (o filme, o teatro), enquanto leitor a obra literária, enquanto ouvinte a obra musical...
- Isabel X -
O mundo deixou de sustentar suas verdades, e a sociedade virou refém dos devaneios.
Minhas considerações à todos os conceitos, mas, continua nojento contemplar um URINOL.
Temo, penalizada a juventude dentro deste molde niilista, tomada como conspiração do despreparo. Interpretada de modo errôneo pela percepção sensacionalista da mídia, a nível de especulação consequentemente ao impacto da futilidade referenciada como aporte educativo.
Tudo pode????
Então, VIVA a Barbarie...
"Stella cadit,tellus fremit, et ego Malleus orbis!" Átila, rei dos Hunos.
A Arte tem de assumir suas responsabilidades.
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