Por outro lado, em todo o período analisado, de 1957 a 1997, nenhuma obra particular de reconstrução ou remodelação foi de facto inviabilizada. Durante as primeiras duas décadas nem sequer foi objecto de parecer por um corpo técnico especializado, nas segundas duas décadas mesmo não aprovada, acabou por ser construída. Em consequência, estas obras alteraram a estrutura das habitações, mudaram a cor dos edifícios e outros elementos caracterizadores estéticos, decorativos e funcionais. Onde existiam casas identificadas pela sua cor, surgiu um casario monotonamente branco. Nem mesmo as obras destinadas ao turismo tiveram rumo diferente. Por exemplo, obras de adaptação a um turismo da habitação – ironia das ironias – destruiram a botica da antiga vila. Proliferam nos últimos tempos os aumentos de densidade, através dos destaques das áreas de logradouros junto às muralhas, após os respectivos proprietários terem conseguido criar um TO com uma licença de obras para construção de arrecadações.
Se esse é o panorama das obras particulares, menos problemático não o das obras municipais. Preservado o castelo – medieval – as fortificações seiscentistas de Monsaraz estão hoje transformadas em parques de estacionamento, por iniciativa da Câmara efectivada em 1989, depois de em 1948 terem estado à venda (o que só não se consumou porque a população de mobilizou em protesto). Essa intervenção destruiu o fosso da muralha e cobriu todo o pavimento com uma calçada de xisto em cutelo, apresentada como um equivalente (aliás puramente imaginário) de calçada medieval.
Da mesma obra fez parte a instalação de potentes projectores em torno da muralha, de forma a criar um cenário que obviamente nada tem de medieval e altera a leitura da presença discreta da arquitectura e do próprio monumento.
Entretanto, a vila passou de 347 habitantes em 1960 para 145 em 1995. A escola primária tem sido artificialmente mantida. Em 1950, podíamos detectar, pela análise demográfica, mais de uma vintena de profissões em Monsaraz; hoje apenas seis, metade das quais ligadas ao turismo.
Neste período, a vida quotidiana e social empobreceu quantitativa e qualitativamente em relação ao que sucedia algumas décadas atrás. Há menos diversidade. A sociabilidade tradicional foi destruída e não deu origem a outra. As práticas recuperadas na maior dos casos perderam o sentido original. Exemplo: a matança do porco é agora um evento, que culmina numa refeição paga, enquanto no passado fazia parte do processo de abastecimento e gestão da economia familiar.
É isto que nos conta Ana Paula Amendoeira, no seu livro Monsaraz. Reconstruir a Memoria, onde narra com pormenor todo o processo de patrimonialização, conduzido sem critério histórico nem controlo patrimonial da vila histórica. Ana Paula conta esta história triste de uma forma contida. Fala de uma realidade que conhece pela investigação e que vive como pessoa, uma realidade que certamente quis que fosse diferente e que, na medida em que lhe foi possível, tentou contrariar.
Hoje já não é possível voltar a Monsaraz sem ter em conta este interessantíssimo (mesmo que um pouco cruel) trabalho da Ana Paula. Não sei se ele pode inspirar as autoridades locais e os responsáveis pelas politicas públicas de património. Mas sei que este livro constitui um contributo precioso para a discussão da orientação que lhes damos e demos. Gostaria evidentemente, porque gosto de Monsaraz, que este livro constituísse uma ocasião dramática para pensar o que fizemos e encetar um novo caminho, com as alianças necessárias, para dar vida à povoação. Desconheço se há energia e motivação suficientes para isso. Mas gostaria que o case study que Ana Paula nos trouxe com competência e consciência patrimonial nos inspirasse na reflexão e na intervenção.
Ana Paula Amendoeira, Monsaraz. Reconstruir a Memória. Lisboa, Colibri, 2009.
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