Em Novembro de 2006, foi-lhe diagnosticado um cancro. A notícia foi para Francois Ascher um grande choque. Acabava de, como explicou no livro que dedicou à reflexão e registo do tempo de vida que lhe restava, "encontrar aquilo que não procurava".
Examen Clinique, Journal d'un Hypermodern, livro que publicou em Setembro de 2007 (veio a falecer em Junho de 2009), é um documento único. Escrito sob a forma de cartas endereçadas aos familiares e amigos próximos, é obra de sociólogo, na qual a experiência limite do eu ilustra e desafia a teoria social. Adquiri-o na última semana, depois que soube (vide o que aqui escrevi a 2 de Maio) do sucedido com o seu autor.
Extracto da carta a sua filha Judite, datada de 21 de Julho de 2007.
Minha Querida,
Fiz-te parte da evolução do meu projecto de livro. Não fiz outra coisa que tentar, uma vez mais, pôr em prática este princípio de vida que, modestamente, julgo ter-te conseguido transmitir: fazer de maneira que, sempre que possível, "alguma coisa má seja boa". Ocorreu-me um dia que a frase constituiria um belo epitáfio para a minha sepultura. Nunca pensei que este tema viesse a entrar tão cedo na ordem do dia...
Diversos componentes estão na origem da minha atitude, entre os quais, decerto, o prazer da vida. Tive muita alegria de viver e, além disso, tive muitas oportunidades para tal, agora que tenho poucas. Há igualmente uma atitude face ao futuro que leva a não deixar que o passado me pese, mas antes me proporcione um material para o futuro, para novos projectos. Isto implica nomeadamente a exclusão de qualquer remorso que não serve para nada. Tento sempre dizer a mim próprio: "É assim", ou então: "É um facto". O único interesse em nos debruçarmos sobre um passado desagradável é o de dele tirar eventualmente alguns ensinamento para o que vem a seguir. Tento não reter do passado senão aquilo que foi agradável para conservar o mais duradouramente possivel as sensações que o acompanharam.
Esta atitude hedonista, epicuriana, assume provavelmente em mim uma dimensão especificamente hipermoderna, na medida em que implica uma certa dose de reflexividade. A reflexividade não é sinónimo de razão: é uma razão que constantemente regressa a si própria para analisar as suas próprias consequências. Antony Giddens e Ulrich Beck desenvolveram neste sentido análises muito ricas.
A reflexividade é assim uma forma "avançada" de racionalização que se situa no coração do processo de modernização no qual o Ocidente europeu entrou alguns séculos atrás. A reflexividade é o acto do pensamento que retorna a si próprio para tomar conhecimento das suas próprias operações. É também a atenção prestada pelo sujeito à sua experiência, à natureza das suas percepções e representações. A reflexividade é distanciar-se do hábito, descolar do homem e do mundo, acto de uma consciência que se destaca dos objectos, movimento da inteligência debruçando-se sobre os seus próprios passos. A reflexividade da vida social moderna pode então ser definida como o exame e a constante revisão das práticas sociais, à luz de informações que respeitam a essas mesmas práticas.
A noção de "modernização reflexiva" introduz duas dimensões suplementares relativamente ao uso corrente da noção de racionalização: implica uma mobilização do conhecimento generalizada a todas as esferas da vida social (incluindo tradições e religiões) e permanente, isto e que efectua um retorno em contínuo à análise dos efeitos da acção, com o objectivo de fundar as acções seguintes. Ao nível individual, produz uma selfconfontation, uma atenção a si que modifica com certeza as relações sociais e a relação com o outro.Para Gilles Lipovetsky, daria igualmente origem a uma forma nova de consumo, que ele qualifica de hiperconsumo, e que visaria mais uma "felicidade" pessoal (reflectida e "paradoxal") e menos a afirmação de um estatuto mais ou menos ostentatório. Ao nível social, a reflexividade é um dos factores que contribuem para a emergência da economia da informação e do conhecimento, pois a informação e o saber são simultaneamente matérias primas e produtos da reflexão.
A reflexividade cria deste modo uma espécie de processo em contínuo que impede a distinção nítida das fases de análise e passagem à acção. Não cessamos de raciocinar! A reflexividade pode assim tornar-se, de um certo modo, naquilo em que eu a aplico, uma espécie de instrumento de saber-viver. Ela apresenta virtudes múltiplas, permitindo nomeadamente criar uma relação positiva com o passado, dado que este serve para construir o futuro. O que tem ainda como consequência deixar um espaço muito reduzido para um sentimento como o remorso. Isto é preciso. Mas apesar de sublinhar esta dimensão da reflexividade... arrependo-me de me não ter interessado mais pelo estoicismo, e, de forma mais geral, pela filosofia.
Francois Ascher, Examen Clinique. Journal d'un Hypermoderne. Paris, L'aube, 2007, p. 39-41.
domingo, 16 de maio de 2010
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2 comentários:
A seriedade destas palavras é acentuada pela consciência da proximidade da morte própria. Há uma ressonância mais profunda em palavras ditas nessa situação. Em que afinal todos estamos, mas sem o sabermos desse modo tão claro e clarividente.
Heidegger ensinou que "o homem é um ser para a morte" por ser essa consciência que o distingue dos restantes animais. Se a não possuísse, limitar-se-ia a comer, dormir, procriar.
Destaco do que diz François Ascher, quanto há reflexão contida na acção (e vice-versa) e quanto o conhecimento é sujeito-sujeito em vez de sujeito-objecto.
Não desconfiava minimamente de que isso podia ser "hipermoderno".
Curiosamente, já tenho dito muitas vezes, porque o aprendi, que o principal da vida é ser estóico e ter amigos (ser amigo).
- Isabel X -
- Isabel X -
A "reflexão" tornou-se hipermoderna, como o único refúgio que resta ao individualismo. Não sendo causa, mas, conseqüência.
Na atualidade todo ser pensante é empurrado, por N correntes. E, sem reflexões, ou, QI, não passamos de resíduo contemporâneo atropelado no processo evolutivo.
Ao colhermos um depoimento nestas circunstâncias, a cerca do limite humano, a pureza das palavras constroem valores que animam a alma. Pois, as reflexões, prolongam a vida.
Tem um provérbio italiano (de mau gosto) mas, nos leva a pensar.
"Se não te vejo mais, feliz morte".
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