A convite da Presidente da ADLEI, ontem em Leiria, li este pequeno texto sobre o conferencista convidado, o Professor José Mattoso:
“Raramente começo uma palestra, grande ou pequena, sem perguntar que direito tenho a falar do assunto que me foi atribuído. Hoje, mais do que nunca”.
Assim iniciou o Professor José Mattoso a sua conferência inaugural do Colóquio “A Intimidade na Arte”, no Conservatório de Lisboa, em Outubro de 1987 (A Escrita da História. Teoria e Métodos, Lisboa, Estampa, 1997, p. 209). Eu poderia agora continuar, parafraseando o que em seguida ele então disse: “Realmente sinto-me com algum direito a falar de história, e de alguns historiadores, sobretudo de história contemporânea, mas não me ocorreria apresentar, por minha própria iniciativa, o Professor José Mattoso, por me faltar saber e arte e, sobretudo, escala para esse efeito.
Aceitei no entanto o convite que me foi endereçado pela Senhora Presidente da ADLEI, Dr.ª Anabela Graça, porque permitiu associar-me a uma homenagem que sinto como um dever, a uma oportunidade de prestar reconhecimento público a alguém que marcou profundamente a minha geração, na sua relação com a historiografia, nomeadamente a historiografia da Idade Média, e até com a história.
Passo portanto ao sumaríssimo enunciado das razões que aqui me trouxeram.
1.
Não fui aluno do Professor José Mattoso que iniciou a sua carreira académica na Universidade portuguesa em 1971, já com o seu doutoramento realizado (Lovaina, 1966), como professor auxiliar na Faculdade de Letras. Sucede que, tendo eu concluído o meu bacharelato em História no ano anterior, iniciei de imediato a actividade docente no ensino secundário, em Castelo Branco. Mas no ano de 1971, regressado a Lisboa, retomei os estudos para conclusão da licenciatura (então de 5 anos) e comecei a ouvir falar do novo professor de Idade Média, alguém que deixara recentemente a vida monástica (motivo de natural curiosidade na época) e que impressionava os seus alunos pela novidade dos temas e das abordagens que propunha. Nos anos seguintes, professor de história no Liceu do Padre António Vieira, acompanhei de perto a entrada na Faculdade de jovens estudantes que vieram a ser alunos do Professor Mattoso e alguns mesmo, mais tarde, seus colaboradores próximos, como o Doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa. Fui desta forma tendo noticia da renovação que as aulas e as investigações do Professor José Mattoso introduziam na História Medieval e no ensino e metodologia da História.
Conhecera bem o ambiente em que decorrera o fim da longa hegemonia que sobre os estudos medievais exercera a Professora Virgínia Rau na Faculdade de Letras de Lisboa e os primeiros sinais de mudança de perspectiva que se podiam adivinhar nas suas jovens assistentes à época, as Dr.as Maria José Ferro e Iria Gonçalves.
As notícias indirectas que me chegaram enquadravam o Professor Mattoso no campo da “Nova História”, uma corrente que, vincando as exigências do rigor abonadas pelo método científico, não as reduzia nem à problemática, nem aos cânones da história económica dos anos 60 e da história demográfica dos anos 70. Ampliava os temas, integrando áreas até então vedadas aos historiadores, e sobretudo convocava aquilo a que o próprio José Mattoso designou por “um sentido da totalidade e uma espécie de capacidade de comunhão com a matéria histórica no seu conjunto”. Era esse sentido, ou a busca dele, que permitiria ao historiador ultrapassar os limites da capacidade analítica e avançar na “descoberta dos indícios significativos e das estruturas profundas” (A Escrita... p. 49).
No final da década de 1970, entretanto, eu próprio ingressei no corpo docente da Faculdade de Letras, mas já não encontrei aí nem o Professor Mattoso, nem aquelas antigas assistentes da Professora Virgínia Rau. Tinham todos migrado para a Universidade Nova de Lisboa, onde o Professor José Mattoso porventura encontrou ambiente intelectual mais estimulante e mais propício ao seu magistério. Durou exactamente 4 anos esta minha segunda passagem pela escola onde me formei. Nenhum dos meus amigos, assistentes como eu, nessa transição academicamente tumultuosa dos anos 70 para 80 resistiu ali. Recordo aqui alguns nomes: o saudoso Rui Rocha, Fernando António Baptista Pereira, Hamilton Costa, José Manuel Sobral, Arnaldo Pereira, José Baginha, Cláudio Torres, que se viram forçados a retomar carreiras profissionais, académicas ou não, noutras paragens.
Foi nessa década de 80 que o Professor José Mattoso iniciou a publicação sistemática dos seus estudos e ensaios históricos. O papel da Estampa foi decisivo, graças a esse editor singular chamado António Carlos Manso Pinheiro – casado com uma Professora de História da Universidade Nova, a saudosa Ana Maria Alves – que na colecção “Histórias de Portugal”da ediora se encarregou de divulgar junto do grande público a obra de José Mattoso.
Pude então tomar contacto mais directo com o trabalho aturado do medievalista, assente numa investigação proficiente e dedicada, e aperceber-me melhor da sua originalidade.
José Mattoso não se escusava a submeter a reanálise nenhuma das grandes problemáticas que a historiografia pensava ter resolvido ou simplesmente arrumado: a nacionalidade, o feudalismo, a passagem de uma sociedade de ordens a uma sociedade de classes. Sem ignorar o marxismo e o contributo dos historiadores marxistas, ele trazia à nossa História uma liberdade intelectual e uma imaginação conceptual sem paralelo. A sua abordagem à história era fundada numa experiência pessoal, onde a consciência do sagrado jogara um papel fundamental, e numa cultura científica, literária e artística invulgares. O abandono da clausura, se não representou uma ruptura com a necessidade pessoal de uma reflexão interior em ambiente protegido e de recolhimento, teve um efeito de abertura a outras experiências do mundo e da sociedade, que enriqueceu certamente a visão humana do historiador.
Historiador do tempo longo, ele mostrava ser também tributário dos “tempos interessantes” (para usar uma expressão do historiador Hobsbawm) em que o seu autor se formara. A obra de José Mattoso falava também do seu tempo, pelo menos num duplo registo.
O primeiro é o do cruzamento de saberes, práticas e inspiração de origens diversas – as ciências sociais, a viagem e o território, a alteridade. O segundo é o do papel da história que preenche não apenas o espaço íntimo da procura da verdade, como o espaço público da compreensão da nossa identidade histórica e da passagem de testemunho para os quem vêm a seguir a nós.
A sua obra enuncia a intenção de corresponder ao “propósito dos leitores das obras de história” que “buscam instintivamente uma resposta para as interrogações do Homem acerca de si mesmo”. Perseguia a “impossível exigência que o historiador tenta, em última análise, impor-se a si próprio”, a de “associar a atitude existencial perante o passado da Humanidade com a descoberta do peso da História na sua própria vida e na sociedade de que faz parte, com a habilidade possível na busca de indícios significativos impresso na matéria, e ainda com o recurso à disciplina científica para os associar e interpretar” (A Escrita...p.42).
O marco fundamental da inscrição da nova história de José Mattoso no nosso tempo foi a publicação em 1985, dos dois volumes de Identificação de um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal. Passados 25 anos sobre a edição desta obra, podemos dizer que ela é não apenas uma referência cimeira da nossa grande historiografia, como uma das peças mais proeminentes da criação intelectual portuguesa do século XX. O espaço e o tempo, as categorias sociais, as hierarquias e funções sociais, os modos de produção e as actividades económicas, o poder, o Estado, as ideologias, os corpos institucionais, a tecnologia, a demografia, a cultura: temas e problemas tratados de forma sólida e inovadora que permitiu ao nosso tempo tentar perceber o que o antecedeu. Oposição, composição, identidade, conceitos nunca antes usados para redescobrir as raízes de um espaço habitado que os homens convictamente tomam como seu e onde jogam o seu destino colectivo. O Ensaio sobre as Origens de José Mattoso devolvia-nos um “património próprio” partilhável por todos nós, cidadãos.
2.
Aproximo-me agora de uma outra dimensão da actividade do Professor José Mattoso, exercida num contexto que, aliás, me facultou o seu contacto pessoal.
Conheci-o em 1981, em reuniões preparatórias do que veio a ser a Associação de Professores de História, uma organização que trouxe aos professores, sobretudo os do ensino básico e secundário, instrumentos fundamentais de reflexão e de afirmação do lugar específico e insubstituível da história no sistema escolar. José Mattoso acompanhou com particular – e para mim inesperado – empenho a constituição da nova associação e os seus primeiros passos.
Também lembro, a propósito, que a figura de José Mattoso está na origem do CEPAE, na altura designado Centro do Património da Alta Estremadura, em 1993. Coube-lhe apresentar, em reunião convocada pela ADLEI, a justificação deste projecto que visava, em última análise, o estudo e promoão do património material e imaterial da região que tem por centro a cidade onde nasceu: Leiria.
Na mesma ordem de preocupações está o papel institucional que aceitou desempenhar à frente dos Arquivos Nacionais entre 1988-1990 e 1996-1998. Com intuito similar não hesitou em rumar a Timor Leste em 2002, onde tentou ajudar na preservação do património documental daquele novo pais.
O cidadão também esteve presente em momentos politicamente relevantes, como quando o Presidente Mário Soares patrocinou o Congresso “Portugal Que Futuro” (1994) ou quando tomou posição pública sobre o referendo relativo à interrupção voluntária da gravidez (2007).
Mas a intervenção cívica do Professor José Mattoso que mais gostaria aqui de destacar é a que respeita ao apoio e colaboração que tem prestado a Cláudio Torres e ao Campo Arqueológico de Mértola. Não se trata apenas do reconhecimento do valor intelectual de Cláudio Torres (um dos da minha geração que não teve condições para fazer carreira na Faculdade de Letras de Lisboa) – que José Mattoso lembrou no acto de atribuição do doutoramento honoris causa pela Universidade de Évora em finais de 2001 - mas da percepção da importância cultural do trabalho de preservação patrimonial e do seu papel na vida das comunidades.
3.
A história está hoje perante novos desafios. A hipermodernidade, para usar uma palavra do sociólogo François Ascher, instaurou o desconforto face ao futuro. Mas a tirania do presente também arrasta dificuldades em lidar com o passado.
Como referiu na semana passada em Serralves, Daniel Inerarity, as sociedades tradicionais não tinham dúvidas em antecipar o futuro: o futuro seria sempre em larga medida uma continuação do passado. Ora foi exactamente essa convicção que se degradou, avolumando a insegurança e a incerteza.
Mas a nossa relação com o passado também sofreu transformações. Se o presente cavalga o tempo, numa passada quase vertiginosa, temos cada vez mais dificuldade em reivindicar um passado comum e partihar uma identidade colectiva.
Tony Judt fala disso mesmo, relativamente do século passado, neste seu admirável livro O século XX Esquecido. Mas o mesmo pode ser dito do passado mais longínquo. A fragmentação das memórias, a sua ultrapassagem rápida, criou a ideia que aquele historiador considera a mais nefasta, a de que vivemos uma era sem precedentes, a de que a história perdeu a última – a única? – razão de ser, a de nos proporcionar um fio de continuidade com o passado. Os esforços de recuperar uma historia narrativa, que é hoje aliás feita de uma multiplicidade de narrativas, aí está para o demonstrar.
Marc Augé, num livro significativamente intitulado Le Temps entre Ruines, mostrou que a nossa obsessão com o património é a consequência do fim do tempo que originava ruínas. Já não fazemos ruínas (e por isso musealizamos tudo), produzimos destruição (estaleiros, vazios, espaços desconstruídos), numa espécie de antevisão sinistra do futuro.
À história é um elemento fundamental da procura das interrogações sobre o homem. O que “o passado pode realmente ajudar-nos a compreender” é “a complexidade perene das perguntas”, escreveu Judt (O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias. Lisboa, Edições 70, 2009 p. 33). José Mattoso designou, como vimos a busca do passado, como uma “busca do sentido”.
A sua obra cumpre com brilho, elegância, profundidade e pertinência únicas o desejo que enuncia no Prefácio de “Naquele tempo”:
“Desejaria que as minhas explorações do passado não fossem viagens a um reino de sombras, nem mitificação de factos pretensamente privilegiados, mas revelação do que sempre de novo existe no passado, do que sempre de novo o traz até nós, do que sempre de novo nos impulsiona no presente. Do que sempre de novo deveríamos transmitir a quem vier depois” (Naquele Tempo. Ensaios de História Medieval, Lisboa,Temas e Debates, 2009, p.8).
sábado, 22 de maio de 2010
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3 comentários:
É reconfortante saber que existem pessoas como José Mattoso. Pelo menos ele existe.
A clausura deve ter-lhe conferido uma capacidade invulgar de perscrutar os documentos da história com os olhos da alma, para além dos físicos. O texto diz da abertura à sociedade a que a clausura conduziu. Sem dúvida! Como deve ser sentida de um modo único por quem vem de abandonar um mosteiro!
O João escreve sempre bem, mas desta vez excedeu-se. Inspiradíssimo. Ninguém melhor para apresentar o professor Mattoso!
É a "escrita do amor", como diria Agustina.
Há uma nota poética que perpassa todo o texto, com particular incidência no ponto 1), que deve ter agradado a José Mattoso. Ele que sempre foi defensor de que a escrita da história tem que ser poética e não pesada e erudita como tantas vezes.
Este texto é também (um pouco) a "escrita de si", não é, João? Como se o autor se descobrisse (um pouco) no que descobre (tanto) do professor José Mattoso.
É uma felicidade ler o que aqui vem escrito.
- Isabel X -
Vim a correr para escrever aqui aquilo que a Isabel acabara, afinal, de escrever e, de resto, bem melhor do que eu o faria. Não apenas me inscrevo na admiração de um como na de outro. Obrigado.
Belíssimo texto, prof Serra.
O facto de versar sobre essa figura tão transparente como grandiosamente enigmática que é José Mattoso - especialista nessa medieva idade de natureza a ele semelhante, tão maltratada como, sem o seu contributo, mais mal compreendida - torna-o quase sublime.
Cumprimentos.
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