quarta-feira, 7 de abril de 2010

Social-democracia

António Muñoz Molina num comentário publicado na edição de Domingo do El Pais sobre o último livro do historiador britânico Tony Judt, Ill Fares the Land:
Todos, sem excepção, na Europa ou nos Estados Unidos, somos de alguma forma beneficiários da revolução social democrata que soube favorecer a igualdade e a justiça, fortalecendo, e não apenas conservando, as liberdades individuais: quando vamos ao médico, quando frequentamos a escola, ou mandamos os nossos filhos para a Universidade, quando apanhamos o comboio ou o metro, e até quando conduzimos o nosso carro particular por uma auto-estrada que não teria sido possível construir sem um grande investimento público. E, no entanto, desde o tempo de Margaret Tchatcher e Ronald Reagan, o descrédito do sector público cresceu como uma gangrena, não só à direita como à esquerda, que, sempre que chega ao poder frequentemente adopta uma linguagem entre o tecnocrático e o cínico. O sector público é ineficiente. Um empresa privada pode prestar muito melhor qualquer serviço, uma vez que se rege pela racionalidade do lucro e não pela rotina ou pela corrupção da burocracia. Há uma maneira de fazer cumprir estas profecias: retirarmos meios aos serviços públicos, não cuidarmos da sua gestão e, deste modo, demonstrarmos que precisam de ser privatizados. E para atrair investidores, aliciarmo-los com subsídios, com preços tão baixos que são um desfalque sobre o que pertence a todos e que contribui directamente para o lucro dos accionistas.
Tony Judt, de origem britânica, denuncia a forma como o património ferroviário foi vendido, a preço de saldo, a companhias que pioraram a situação dos caminhos de ferro levando-os à ruína, de modo que o Estado teve de intervir para os resgatar.
Os especialistas em economia asseguravam que, uma vez desmontado os controlos públicos sobre o mercado, a riqueza se multiplicaria ilimitadamente em benefício de todos. Quanto mais ricos fossem os ricos e mais se elevassem as cataratas da sua prosperidade, mais eficazes seriam os contributos dispensados ao bem estar dos pobres, sobrepondo-se às toscas politicas sociais dos governos. Tony Judt aduz alguns dados: em 1968, o director executivo da General Motors ganhava sessenta e seis vezes mais que os seus empregados. Em 2005 a diferença de rendimentos entre um empregado médio de WalMart e o seu director máximo situava-se numa escala de um para novecentos. A família proprietária de WalMart possui uma fortuna estimada em 90.000 milhões de dólares, o que equivale aos rendimentos conjuntos dos 40% mais pobre da população americana: 120 milhões de pessoas.
Enquanto isto ia sucedendo, a esquerda entretinha-se com outras coisas, sobretudo com a defesa de causa singulares, em muitos casos justas, mas descuidando o mais valioso do património do passado, o impulso de um projecto universal de justiça. As diferenças identitárias tornaram-se mais importantes que as diferenças de classe. O narcisismo individualista dos anos sessenta aliou-se com facilidade às virtudes do comércio para impossibilitar qualquer veleidade de rebeldia política colectiva. Em nome de diversidades reais ou inventadas, justas ou caprichosas, a esquerda condenou-se a si própria à paralisia, justamente num período em que mais seria necessário restabelecer a força do sector público, que é a única defesa da imensa maioria contra os abusos dos que roubam e dos que são corruptos. Os que há trinta anos humilham o Estado tiveram que recorrer a ele para que o salvasse da ruína que eles próprios provocaram reiteradamente.
Devíamos estar mais furiosos, diz corajosamente Tony Judt na sua cama de inválido; e devíamos juntar por uma vez as nossas diversas causas numa gramática comum da emancipação.

1 comentário:

Isabel X disse...

É caso para perguntar:

"What's left?"

como o título intraduzível da obra de Nick Cohen.

- Isabel X -