Estava à varanda da sala de visitas, e atrás o maquinismo da casa funcionava com alegria, a fumaça se exalando do fogão – como uma história antiga. A rua do Mercado cheia, porém, de novas luzes e de novos carros. Lucrécia esperava Mateus, mergulhava o rosto na rua, ai! suspirava no primeiro andar, bondes e carros abafavam a exclamação. Inúmeras buzinas macias ou esgalhadas enchiam o ar do sobrado de ruídos, quase luzes.
Mas através das buzinas abafadas sentia-se o prazer das ruas como fontes de um jardim, o apito do guarda-civil entre os postes: algo mecânico sucedia no mundo. E, atrás, o par de meias secava na cadeira. Ai, suspirava com o rosto coberto de pó-de-arroz, o marido não vinha, ai!, dizia a cara exposta.
E de súbito o som desafinado, um trem descarrilando dentro do relógio da torre, um! – cara de cal – dois! – o incêndio da casa – três eram oito horas e Mateus não vinha! Os olhos estavam secos mas as buzinas soluçavam e da rua subia cheiro de açúcar e vinagre.
Como se transformara o subúrbio! o suor da noite quente colava roupas ao corpo, o perfume exaltado de farinha erguia-se até ao nariz: tudo esperava chuva.
De facto já chovia. Gotas espaçadas de início, e depois, pouco a pouco, mas já incomensurável, o mundo inteiro chovia – por mais longe que se olhasse havia a chuva furiosa e constante, as ruas banhadas se esvaziavam. As luzes refrescadas. Pelos canos as águas escorriam com pressa.
Vista do alto de uma janela a cidade era um perigo.
Carros, de condutores invisíveis, deslizavam n'água e de súbito mudavam de direcção, não se sabia porquê. S. Geraldo perdera os motivos e agora funcionava sozinho. Bondes nos trilhos abafavam outros ruídos, e certas coisas pareciam mover-se inteiramente silenciosas – um carro elegante apareceu tranquilo e desapareceu. Em S. Geraldo nascera uma vida diária que nenhum forasteiro perceberia. Chovia e os tempos eram maus, estava-se em plena crise.
Mas havia uma glória que até então nunca se atingira. Indivisível pelos habitantes. Se acontecia um assassinato, era S. Geraldo quem assassinara. Nunca as coisas haviam pertencido tanto às coisas. Fora para sempre deflagrada uma mola, e a cidade era um crime.
Esta cidade é minha, olhou a mulher. Como pesava.
Poucos minutos depois a chuva cessou. As calçadas molhadas cheiravam alto, restos de peixe da manhã eram arrastados para os esgotos... a padaria já apagara as luzes, as estrelas estavam limpas.
Clarice Lispector, A Cidade Sitiada. Lisboa. Relógio d'Àgua, 2009 [edição original 1949]. pp 99-100-
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
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