segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda

Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda,
Ó meu guizo de prata,
Meu colar de pérolas deixado em cima da cómoda,
Minha aliança de ouro em dedos já velhinhos e fieis,
Minha cantiga de raparigas ao poente,
Ó meu fumo de cigarro, tão inútil e tão necessário,
Minha Bíblia para as crianças brincarem,
Minha amante que eu queria trazer ao colo como uma filha...
Olha, tenho as mãos em febre...
Tenho a testa a escaldar, tenho os olhos muito estranhos...
Todos olham para o brilho dos meus olhos e espetam-se neles...
Eu tenho febre e tenho sede e lembro-me de ti por causa disso
Porque se eu te tivesse como te quereria ter
(Não sei se é de um modo físico, ou de um modo psíquico)
Eu não teria nem febre, nem sede, nem a testa a arder,
Nem os olhos secos, muito secos, sob a fronte...
Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...
Se tu soubesses o que é amar as coisas simples e calmas
E não ter jeito para procurar senão as outras coisas!
Se tu soubesses porque é que quando eu estou na minha quinta de dia
Tenho saudades dela como se não estivesse lá...
Se tu soubesses o que eu sinto à noite, nos hotéis, pelas ruas,
Se tu soubesses! Mas eu próprio não sei o que é que sinto...
Minha lantejoula, minha casa de bonecas,
Ó meus brinquedos da minha infância atados com cordéis!
Ó meu regimento que passa com a banda à frente,
Minha noite no circo, nos cavalinhos, a rir dos palhaços...
Ó minha (...)

Poemas de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Edição crítica de Cleonice Berardinelli.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. p. 325.

3 comentários:

Isabel Soares disse...

Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...

E alguém terá tido o bom senso de explicar a este senhor que se ele não dissesse, ninguém poderia adivinhar? Ninguém mitigaria a dor? Ninguém poderia aceitá-lo como era? Não. Não teve. Ou ele não seria o nosso maior poeta (que Camões me perdoe a preferência!), pois Vinicius garante que só a mágoa escreve poesia e eu acredito em Vinicius.

Isabel Soares disse...

"O bom senso existia; mas estava escondido, por medo do senso comum"
Alessandro Manzoni (1785-1873)

Tia Júlia disse...


"Alcée Arobin's manner was so genuine that it often deceived even himself."

Kate Chopin, THE AWAKENING, New York, Dover Publications Inc., 1993.