quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Ontem, Isla Negra e Valparaíso

Ontem acordei com a lembrança da Isla Negra e Valparaíso. Na Isla Negra, a casa de Neruda, vale, não pela presença do homem, pelo qual não consigo sentir simpatia, mas do poeta que cantou o amor de forma tão impressiva. A casa, preenchida pelo gosto duvidoso do diplomata, é intragável, mas o lugar possui uma beleza agreste que me envolveu.
Ao almoço daquele dia ensolarado em que visitei a região, fiquei ao lado de uma poetisa que na juventude bebeu do cálice do autor de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Fiquei com a sensação de que aquela guardiã do templo dos amores nerudianos se tinha contemplado a si própria com o encargo de velar pela memória do poeta até ao fim da vida. Teria cumprido já pelo menos trinta anos dessa penitencia auto-imposta.
Aparentemente suscitei, sem merecimento (meu) de maior, a sua generosidade. E recebi das suas mãos pequenas um CD de capa artesanal onde guardava as gravações de alguns poemas de Neruda. "Pablo disse-os para mim", confidenciou-me, e eu nem por um momento duvidei. Aquela voz arrastada como uma lamúria era de facto do poeta.
Quanto a Valparaiso, fica para amanhã.


2 comentários:

Isabel Soares disse...

Que análise tão cáustica aos amores da senhora depois de esta achar, possivelmente, que o seu jeito afável revelava uma sensibilidade onde a dela encontraria eco. Não a amar Neruda, evidentemente, mas a compreender o gesto de amor com que lhe disse que ainda o amava. Quem sabe? Porque sim. A melhor razão por que se ama.
Espero que do vosso encontro e mercê da sua antipatia pelo homem, que não pelo poeta, tanto quanto me parece, lhe tenha ficado a confirmação da máxima que a outro se deve: “O coração tem razões que a razão desconhece.”

Júlia disse...

1. Nunca tendo pisado Valparaíso, será natural que o título "A Ilha Negra" nos remeta, por certo com menos paisagem e mais gozo, para o álbum de Hergé, publicado em 1938.
2. De Pablo Neruda, pensamos que "O Carteiro" dele é, porventura, melhor do que ele.
3. Da poesia de Neruda, preferimos o soneto LXXXIX de "Cem Sonetos de Amor", na tradução, que aqui deixamos, de Fernando Assis Pacheco:
"Quando morrer quero essas mãos nos meus olhos:/ quero a luz e o trigo das tuas mãos amadas/ passando uma vez mais em mim sua frescura:/ sentir a suavidade que mudou meu destino.// Quero que vivas enquanto eu, dormindo, te espero,/ quero que os teus ouvidos fiquem ouvindo o vento,/ que cheires o aroma do mar quer amamos ambos/ e fiques pisando a areia que pisamos.// Quero que tudo o que eu amo fique vivo,/ e a ti amei e cantei sobre todas as coisas,/ por isso fica tu, florescendo, florida,// para que alcances tudo o que este amor te ordena,/ para que esta sombra corra o teu cabelo,/ para que assim conheçam a razão do meu canto.