Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti naquele tempo eu ouvia)
porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia
que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de Frei Luis de Léon que Poe
(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse
de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito
sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa
que tudo o que soubesse não saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.
Manuel António Pina, Poesia Reunida, Lisboa, Assirio & Alvim, 2001
4 comentários:
À pergunta do jornalista (Carlos Vaz Marques):
"Convive muito com a ideia da morte?"
respondeu Manuel António Pina:
"Não. Acho que nunca conseguimos conceber isso perfeitamente. Mas a racionalidade impõe-se-nos. Toda a gente tem a ideia da morte. Durante muitos anos é só uma palavra. Depois começam a morrer pessoas próximas de nós e ela de repente ganha um rosto concreto. Estou numa idade em que muitos amigos meus se estão a ir. Os primeiros foram uma surpresa, agora é quase normal. Embora seja uma coisa sempre muito penosa porque nós também somos os nossos amigos."
- Revista Ler, Janeiro de 2012, p.27 -
Morreu o poeta que dizia prefrir a bondade à poesia.
"A poesia é uma porta para reconhecer que não há porta nenhuma", disse também.
- Isabel X -
Só pela poesia é possível saber de um modo tão concreto:
"Hoje sei: escrevo contra aquilo de que me lembro, essa tarde parada, por exemplo."
E só pela poesia fazer saber (o mesmo?), no peito (também)subitamente aceso de quem lê.
- Isabel X -
"Porque é tudo para sempre, mesmo a efémera morte,/
encontrar-nos-emos eternamente/
e nunca mais nos veremos./
O impossível volta a ser impossível. Para sempre./
Impossível é cada manhã aberta,/
um deus sonha consigo através de nós./
Às vezes quase posso tocá-lo, ao deus,/
surpreendê-lo no seu sono, também ele real e efémero./
Matéria, alma do nada,/
os mortos ouvem a tua música sólida/
pela primeira vez, como uma respiração de estrelas./
A sua intranquilidade transforma-se em si mesma, música./
M. A. Pina "Matéria de estrelas"
"Perante os abismos do antes e do depois, é natural que o homem tenha medo. E que, por isso, ria."
disse Manuel António Pina.
É muito interessante esta ideia de o riso se dever ao medo e (talvez)mais ainda a de o medo se dever aos abismos do antes e do depois.
Mark Twayn dizia-nos que devíamos tomar lições de abismo. É o mais certo que temos, pelo menos em algum momento das nossas vidas.
Nada como a literatura para nela vermos o reflexo de nós mesmos.
- Isabel X -
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