Apesar dos vestígios, dos sinais do tempo, a experiência de
todos os dias parece contrariar tudo o que o conhecimento indica. A cidade
surge-nos como se sempre tivesse sido assim, quando a sua dimensão, como o de
todas as criações humanas, é a da história. É como se, quais operadores de “Photoshop”,
sempre começássemos por ordenar “flatten image” (espalmar, aglomerar a imagem),
ocultando os “layers” (planos, estratos) de que ela se compõe.
“Guimarães 2012” parte desta contradição, que enfrenta declinando
os distintos modos e formas em que ela se desenrola. Se o papel da criação
artística é, sumariamente, o de acrescentar novos elementos ao plano (“layer”)
da contemporaneidade, ela também intervém na desocultação que possamos hoje
fazer dos planos que o tempo comprimiu.
Os atenienses forjaram uma cidade de deuses para melhor
pensar a cidade dos homens. De facto a sua cidade de deuses era uma cidade de
filósofos, onde se discutia a dimensão, o governo e o destino da cidade. Mas os
templos magníficos da Acrópole dispersaram referencias líticas pela cidade dos
homens, como se, de cada ponto de observação da cidade alcandorada, os
pensadores tivessem de dispor, em todos os quadrantes. de réplicas, ainda que
incompletas ou menores, dos templos onde buscavam e exerciam a inspiração.
Ser capital europeia da cultural é para Guimarães uma
oportunidade para actualizar o discurso “multi-layer” sobre a cidade,
proporcionando um conjunto de conectores que permitem a todos, habitantes e
visitantes, produtores e consumidores, descobrir ou redescobrir as
temporalidades e as espacialidades, as construções e as descontruções de que se
faz uma cidade.
Péricles, no famoso discurso de elogio fúnebre reelaborado
por Tucídides, passa em revista todos os “layers” que faziam a singularidade de
Atenas, metáfora da cidade ideal.
“Começo pelos nossos antepassados” – disse o orador. “É
justo e adequado que, numa ocasião como esta, lhes seja dedicada a primeira
menção. Foram eles que viveram neste país, sem interrupção, de geração em geração,
e, graças ao seu valor, legaram-no livre aos que aqui vivem presentemente”.
Mas não esquece a geração precedente. “E se os nossos mais
remotos antepassados são dignos de louvor, muito mais são os nossos pais, que
acrescentaram à herança recebida o império que agora possuímos, não poupando
sacrifícios para serem capazes de deixar as suas conquistas aos que, como nós,
constituímos a presente geração”. E enumera em seguida as componentes
essenciais da República de que justamente se orgulha a sua geração e pelos
quais merece panegírico: a decisão pelo método democrático, a justiça
igualitária, o livre acesso aos cargos públicos, a não profissionalização da
actividade politica, a inviolabilidade da vida privada, a tolerância para com a
diferença, o império da lei e a protecção dos oprimidos, o direito à educação,
ao lazer e à cultura, o gosto pelo requinte sem extravagâncias, a abertura ao comércio
externo e a aceitação do estrangeiro na respectiva diversidade cultural, o
respeito pelos vencidos,
Péricles sabe que desta visão, desta grandeza, há
testemunhos. A memória ficou corporizada na literatura e nas artes. “A admiração
dos tempos presente e futuro ser-nos-á devida, uma vez que não deixámos o nosso
poder sem testemunhos, antes os recordamos em grandiosos monumentos”. A eles
acrescem todavia “uma memória não escrita que (...) permanece nos corações das
suas gentes”.
Como não ver aqui, neste patriotismo da cidade, os traços da
modernidade politica anunciada da Europa? Este é o desafio das gerações
actuais. Honrar o passado, os passados, avaliar o futuro. É alias nessa
capacidade de avaliação colectiva que reside para Péricles o segredo do modelo
de governo ateniense.
“Nós atenienses, somos capazes de ajuizar todos os
acontecimentos públicos e, em vez de considerarmos a discussão dos mesmos como
um obstáculo para a acção, pensamos que ela constitui um passo preliminar indispensável
a qualquer acção prudente”.
2 comentários:
Belíssimo texto. Extraordinária análise, que vive muito mais de si (que é como quem diz: da sua opinião) do que das citações por que habitualmente prima, nas publicações que aqui nos deixa.
Gosto de o ver à “boca de cena” na força do papel que lhe compete. Interessante lê-lo a falar do que gosta. Pena ter fugido apressadamente no fim. Àqueles dois últimos parágrafos, na minha modestíssima opinião, deveria ser mudada a ordem. O João “escondeu-se” e o texto perdeu a apoteose final. Não foi justo para quem o lê. O ator, sem medo, deve esperar pelos aplausos.
E depois deste comentário temerário, fico na expectativa da sua boa vontade para não levar com um ovo na testa.
Não sei muito bem porquê mas a leitura desta reflexão fez-me lembrar a seguinte passagem de um livro que estou lendo agora:
"Os objetivos estão próximos; mas também a vida é curta, e assim se obtém o máximo proveito, e de mais não precisa uma pessoa para ser feliz: porque aquilo que se alcança é que dá forma à alma, ao passo que aquilo que se persegue sem o atingir a deforma. A felicidade depende muito pouco daquilo que se quer, realiza-se apenas com aquilo que se alcança."
- Musil, O homem sem qualidades, 2008, Lisboa, Dom Quixote, I vol., p. 61 -
- Isabel X -
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