sexta-feira, 20 de abril de 2012

Registo

Raul Brandão e Guimarães

“Vi há dias num jornal que estava para breve o seu casamento com uma senhora de Guimarães” pode ler-se numa carta de 22 de Outubro de 1896 enviada por Columbano a Raul Brandão. Admitindo que o casamento de artistas possa ser questionável, o pintor faz votos para que o amigo “encontre uma mulher que o compreenda, que o admire e que o respeite como merece”. Os biógrafos do escritor sublinham todos a relação afectuosa e cúmplice que pautou o casamento entre Raul e Angelina, a vimaranense que, com apenas 18 anos, o então alferes do Regimento de Infantaria 20, conhecera em Maio de 1896. Testemunham-na também as imagens fotográficas do casal, as confissões autobiográficas do autor de Húmus e elaboração de uma obra em co-autoria, caso raro à época, Portugal Pequenino. E, enfim, atesta-a o que pode apontar-se como o seu principal efeito: a decisão do casal de estabelecer em Guimarães, na freguesia da Nespereira, perto do rio Vizela, uma residência permanente.
E assim, o homem do Porto e de Lisboa, que viajara por toda a Europa, tornou-se, a partir de 1903, e sobretudo depois de 1911, data em que se reformou do Exército, um homem também de Guimarães.
Na vida deste escritor que rompeu com os cânones naturalistas e antecipou, pela liberdade criativa, o registo inovador da narrativa contemporânea, Guimarães representou o encontro singular com a terra, com o mundo rural e com o trabalho agrícola. A Casa do Alto foi refugio literário e a propriedade associada foi fonte de rendimento (“Vindimas. Um lagar de palmo e meio e vindimas sobre vindimas... É o pão do meu Inverno em Lisboa” – revela Brandão em carta de 15 de Outubro de 1923 a Teixeira de Pascoais).
“Fugimos para a aldeia... A nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás, o mar verde dos pinheiros, em frente, os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo” – escreve com indisfarçado orgulho Raul Brandão no 2º volume das suas Memórias. “Tudo isto foi pedra e uma árvore contemporânea da fundação da Monarquia. O carvalho centenário cobria todo o eido. Era enorme, era prodigioso. No tronco, que nem seis homens podiam abraçar, tinham os bichos as luras e o seu hálito sentia-se ao longe. Logo que o vi, fiquei apaixonado.  – Vamos viver juntos, vou envelhecer ao pé de ti. Nós não ouvimos as árvores, mas a sua alma comunica sempre connosco: a sua força benigna toca-nos e penetra-nos...”
Se a Casa do Alto conserva os traços da intervenção planeada pelo escritor, fazendo correr um andar novo sobre uma estrutura antiga de lavrador, pela sua obra literária perpassam os temas, os atmosferas e as representações que as pedras e as árvores vimaranense lhe suscitaram.
Foi esse trânsito que Guimarães 2012 pretendeu revisitar, com o concurso de um dos mais prestigiados realizadores de cinema da nova geração, João Canijo.
“Construi a casa, plantei as árvores, minei as águas. Absorvi-me. Uma pedra basta, basta-me um tronco carcomido... Este tipo esgalgado e seco, já ruço, que dorme nas eiras ou sonha acordado pelos caminhos, sou eu. Sou eu que gesticulo e falo alto sozinho, envolto na nuvem que me envolve e impregna. Que força me guia e impele até à morte?” – pergunta Brandão. A vida, evidentemente. Ou a criação, que é a mesma coisa.

João Serra
Presidente Fundação Cidade de Guimarães

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