quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Registo

Elogio da cidade

O programa de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura desenvolve uma agenda de cidade e preenche um lugar de cultura. Na rede de percursos que cruzam cidade, cultura e Europa, o programa sublinha o nó formado por Guimarães.
A singularidade de uma cidade é irredutível, ao mesmo tempo que remete para todas as cidades. Como na teoria do holograma, a identidade de uma cidade, não contendo toda a informação sobre o conjunto de que faz parte, encerra todavia informação pertinente sobre aquele a cuja escala se situa.
Trata-se de uma cidade que valoriza o património comum. Produto da história, o património é em primeiro lugar uma soma: de criações inscritas no tempo, de olhares aplicados por gerações, de narrativas sucessivamente imaginadas e sobrepostas. O património comum é o resultado de uma cumplicidade, não só com o passado, mas também com o futuro. Sem o património comum, a cidade estaria condenada a começar sempre tudo de novo, a inventar do nada.
Compreender o legado para poder transformar, dialogar com a diversidade das heranças é a condição fundamental para assegurar a mudança, a metamorfose, no sentido que lhe empresta Edgar Morin (a metamorfose é uma transformação que se articula com a conservação: da vida, da herança cultural).
O património comum revela, em Guimarães, um impulso regenerador. A cidade combina as representações do seu papel na construção de uma autonomia política precoce, com as marcas de uma ocupação, conduzida por unidades de produção industrial e pela tecnologia, de um território rasgado por cursos de água. Perscrutar esta história é destacar a incidência dos processos da inovação ao longo dos últimos dois séculos e sondar o campo das possibilidades do futuro. Se o tempo traz destruição, é esta que impele a reconstrução, que convoca a inovação.
O património comum compromete o cidadão e revigora a  cidadania. Porque garante a liberdade de criar, que como se sabe nem vive no caos nem sobrevive sob o autoritarismo. O sentido da identidade é pertença e é partilha, e esta só se cumpre plenamente na dimensão do espaço público, de uso colectivo e democrático.
Guimarães 2012 propõe um programa cultural assente nesta cidade, lida desta forma. Esse programa não constitui uma nova narrativa, mas um ensaio sobre a narrativa disponibilizada pela cidade, descobrindo as linhas de que se tece e submetendo-as à tensão do projecto de criação em contexto, da residência artística, do confronto das visões e tendências contemporâneas.
A regeneração das sociedades e das economias supõe uma recomposição do lugar do urbano e do papel das cidades. É aí que a cultura desempenha essa função de operador que estabelece conexões que já lhe foi assinalada. Conexões entre espaços e modos de vida, entre organizações, entre grupos sociais, entre percepções colectivas. Contra a separação, o isolamento, a fragmentação e, claro, o discurso da  fronteira, do medo e do ódio.
O programa cultural de Guimarães 2012 parte do inventário dos conectores de que a cidade já se ocupa. Não os substitui, pretende contribuir para o seu reforço, um sistema onde algumas tarefas exigem um alto nível de especialização e de recurso tecnológicos adequados e, naturalmente, níveis de intervenção de proximidade diversificada.
Reserva de imaginário, a cultura permitirá, nas cidades da escala de Guimarães compreender mais de perto o património comum e incentivar o seu papel como fonte de modernidade. Reserva de experiencia de comunicação e de interacção, a cultura será, nas cidades da escala de Guimarães, um factor essencial de humanização das sociedades.

João Serra

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