As coisas foram piorando e chegaram aos ouvidos das autoridades. Uma manhã, pelas onze horas e pico, o Paulino Cardeano teve a visita do presidente da Câmara em pessoa. Recebeu-o no salão de baixo, com móveis de jacarandá e um piano, verdadeiro monumento de respeitabilidade e de sensatez algo vertiginosa que há nos salões de província, com dois espelhos dourados e cinzeiros em forma de folha lanceolada, com uma ninfa de águas como remate. Como é que uma tal deidade celebra as exéquias dum cigarro ou dum havano, não é fácil de explicar. Mas ela lá está, vestida de verde, com cabelos soltos e muito parecida às senhoras de Klimt. O presidente da Câmara, um homem doentio e de grandes olhos esbraseados, por causa da fadiga e do nervosismo constante, entrou imediatamente no assunto.
- A sua filha é
um perigo para o trânsito nesta estrada.
- O quê? – disse
Cardeano, estupefacto.
- Desculpe-me
pôr as coisas assim, mas é um facto.
O Cardeano
pensou que os presidentes da Câmara são sempre desprovidos de substância
interior, de tutano, de calor humano. Conhecera um que se chamava Homero e nada
mais fazia senão prometer o saneamento nos lugarejos mais atrasados e acabar
com os pobres. Era acometido por uma estranha fixação, a de agradar ao povo.
Era nele como uma inferioridade, como se uma melodia interior o prevenisse dum
fim inesperado.
- Não sei o que
a minha filha… - ia a começar a dizer o Cardeano, mas o presidente interrompeu-o.
- Ela não tem
culpa, é evidente. Mas aquela varanda é muito capaz de não estar bem colocada.
Seria bom mudá-la de sítio.
- Mudar a
varanda? – disse Cardeano. A sua pequena cabeça calva cobriu-se dum tom
arroxeado que alarmou o presidente.
- Não digo isso.
Não sei se me faço entender.
- Não percebo
absolutamente nada.
Quando Cardeano
usava o advérbio “absolutamente”, fazia-o como os advogados, para ganhar tempo.
Estava perto de entrar na questão que tinha a ver com Ema à varanda. Seria ela
causa de alguma cena imprópria? Se assim fosse, ele teria sido informado, de
tal modo a casa era percorrida por um zumbido de novidades e de notícias de que
nada escapava. Mas Ema, acima de tudo, era uma criança e comportava-se como
tal. Falava tão alto da varanda que se podia ouvir até à curva, entre Fontelas
de Cima e Fontelas de Baixo. Não tinha segredos nem sabia nada das maravilhas
da vida. À cautela, Cardeano pediu explicações mais detalhadas.
- Não é nada de
mal – disse o presidente, tomando o seu ar afável das sessões da vereação.
Cruzou a perna e pediu licença para fumar. A ninfa verde, que podia autorizá-lo
ou não, não foi consultada. – O certo é que esta curva já está a ser encarada
como a curva da morte. Todos se despistam aqui, e o motivo é essa maldita
varanda.
Não aludiu a
Ema, mas Cardeano compreendeu, de repente, onde estava o carácter inteligível
da questão. Ema era a causadora. Ao que parecia, o povo tinha apresentado
queixa, mães e pais e esposas também, quanto à presença de Ema na varanda. Ela
causava como que uma rápida resolução de jogar o carro contra o muro, gerando
um procedimento irreversível.
Agustina
Bessa-Luís, Vale Abraão, 1991. Lisboa, Guimarães Editores.
1 comentário:
Muito interessante este excerto de Agustina sobre varandas nefastas. Sobre o efeito devastador da beleza. Sobre os equívocos que provoca.
O saltitar de assunto em assunto, a propósito do tema central, sem nunca o deixar: cinzeiros,senhoras pintadas por Klimt, presidentes de câmara e as suas idiossincrasias...
- Isabel X -
- Isabel X -
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