quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Música

A minha incapacidade de cantar ou tocar um instrumento é humilhante. Mas é frequente a música pôr-me "fora de mim", ou, mais exactamente, numa companhia muito melhor do que a minha. Materializa o oximoro do amor, essa fusão de dois indivíduos na unicidade, sendo que cada um deles, mesmo no momento do uníssono espiritual e sexual, conserva e enriquece a sua identidade. Ouvir música com o ser amado é estar numa condição simultaneamente privada, quase autista, e todavia estranhamente envolvida com o outro (a leitura a dois em voz alta não atinge o mesmo grau de fusão). Daí que a colaboração interactiva, como sucede entre a voz e o piano num "Lied" ou a execução de um quarteto de cordas, seja talvez o fenómeno mais intrincado de todo o Planeta, absolutamente arisco a qualquer análise. Aliás, uma vez que cada incidência deste fenómeno é irrepetível, é bem possível que seja mais complexo do que a dança das galáxias. Uma caixa de música envernizada, uma tripa de gato ou um arame, um martelo com ponta de feltro, a inflexão do pulso do intérprete, a vibração das cordas vocais geram ondas cujas curvas e função algébrica podemos, efectivamente traçar, mas cujos "significantes", cujo poder de transformar os estados físicos e psíquicos, não podemos explicar. Pelo que suponho serem forças fundamentalmente "des"-humanas. É por isso que as interacções entre a música e as outars artes, entre a música e a poesia, são sempre fascinantes. Na grécia pré-clássica, o filósofo podia ser também um rapsodo. Cantava os seus pensamentos. Os argumentos filosóficos desde a antiguidade até aos nossos dias - de Platão, de Nietzsche, por vezes de Wittgenstein - podem ter uma cadência e musicalidade distintas. As afirmações de que a arquitectura é "música congelada", de que a poesia aspira à condição da música enquanto tautologia perfeita de forma e conteúdo (senso que na música a forma é o conteúdo e vice-versa), são imagens que exprimem verdades profundamente sentidas, mas não fundadas na razão. Quem pode definir a "alma"? Mas quem é que não percebe intuitivamente a apóstrofe de Shakespeare contra aqueles que não têm "música na alma", uma ideia cristalizada pela designação "música soul"?

George Steiner, Errata. Revisões de uma Vida. Lisboa, Relógio D'Agua, 2001, p. 96-97

1 comentário:

Isabel X disse...

Nietzsche diz que sem música a vida seria um erro.
A música traz em si uma inigualável capacidade de comunicar emoção.
Para mim, a poesia é, primeiro que tudo, música, ritmo. Formas de arte mais espirituais porque etéreas, imateriais.
Quase sempre, quando choro, é por ouvir música...
- Isabel X -