O amor é, com intensidades várias, a maravilha imperativa do irracional. É inegociável, tal como a (condenada) demanda de Deus entre os Seus enfermos. Tremer, no mais fundo âmago do nosso espírito, nervos e ossos, à vista, à voz, ao mais pequeno toque do ser amado; imaginar, maquinar, mentir despudoradamente para conseguir alcançar, estar perto do homem ou da mulher amados; transformar a nossa existência (pessoal, pública, psicológica e material) num instante imprevisível por via e consequência do amor; suportar dor e depressões inomináveis devido à ausência do amado ou à debilitação do amor; identificar o divino com a emanação do amor, como faz o platonismo, que é o mesmo que dizer o modelo ocidental da transcendência - é desfrutar do sacramento mais inexplicável e banal da vida humana. É, dentro do potencial de cada um, tocar a maturidade do espírito. Fazer equivaler este universo da experiência ao libidinoso, como o faz Freud, explicá-lo em termos de vantagens biogenéticas e procriadoras, são reduções quase desprezíveis. O amor pode ser o elo involuntário, culminando na autodestruição, entre indivíduos nitidamente inadequados um para o outro. A sexualidade pode ser incidental, transitória ou completamente ausente. O mais feio, mais desgraçado, mais malvado entre nós pode ser o objecto de um Eros desinteressado e apaixonado. O desejo de morrer pelo amado ou pela amiga - l'amie, como diz o francês de modo tão exacto e luminoso -, as lúcidas insanidades do ciúme, são contraprodutivas nos termos de qualquer racionalização biológica (darwiniana) ou social. A famosa máxima de Pascal, segundo a qual o coração tem razões que a razão desconhece, acaba por privilegiar a racionalidade. Não são as "razões" que enchem o coração. São necessidades de uma origem completamente diferente. Para além da razão, para além do bem e do mal, para além da sexualidade que, mesmo no auge do êxtase, é um acto perfeitamente menor e efémero. Esperei uma noite inteira debaixo de chuva torrencial para ter um vislumbre da amada a dobrar a esquina. Se calhar nem sequer era ela. Deus tenha piedade daqueles que nunca conheceram a alucinação de luz que preenche as trevas durante uma dessas vigílias.
Do poder supremo, irracional, rebelde a qualquer análise, e muitas vezes desastroso, do amor advém a ideia - será mais uma vez uma puerilidade? - de que "Deus" ainda não existe. De que só existirá, ou, mais precisamente, de que só se tornará manifesto à percepção humana quando houver um amor imenso e muito mais excessivo do que o ódio. Toda e qualquer crueldade, toda e qualquer injustiça inflingida sobre o homem ou sobre o animal justifica as conclusões do ateísmo na medida em que afasta Deus daquilo que seria efectivamente um primeira vinda. Mas, mesmo nas horas piores, sou incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro.
George Steiner, Errata: Revisões de um Vida. Lisboa, Relógio d'Água, 2001. p. 202-204.
4 comentários:
O amor é, sem dúvida, uma alucinação de luz, que não só ilumina como aquece a mais pesada treva.
Tantas vezes nos conhecemos desconhecendo-nos.
Tudo se faz diferente, então.
Em nós, além de nós.
Superarmo-nos: como? De que outro modo?
- Isabel X -
"Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.
Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.
Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói
desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas."
Manuel Alegre
Reparei agora: o que mais gosto deste texto é o título do livro de onde procede: Errata, Revisões de uma vida.
Há uma altura apropriada para proceder a essa operação: fazer a errata da nossa vida.
Só que nos falta a coragem, não é?
- Isabel X -
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