Muito a propósito (parece-me)desta janela de Pablo Picasso e, de modo geral, de um blog de tantas janelas, transcrevo um poema de Manuel António Pina, com o título "La fenêtre eclairée":
A realidade é uma hipótese repugnante,/ fora de mim, entrando por mim a dentro,/ solidão errante/ orfã de centro./
Que respostas vos darei,/ coisas, se tudo é de mais,/ se em vós procurei/ o que em mim procurais?/
Um espelho, um olhar/ onde me ver,/ um silêncio onde escutar/ as minhas palavras; algo como uma vida para viver./
Se estais também sós,/ assustadas e hostis,/ como eu em vós?
- Todas as palavras, 2012, Lx, Assírio & Alvim, p. 236 -
Três anos após este quadro ter sido pintado, uma menina, junto à vidraça da enorme janela de seu quarto, pasmava com as fortes bátegas da chuva torrencial que caíam. O vento soprava assustador. Tal era a força que os fios elétricos localizados junto às telhas do prédio, bem perto do topo daquela janela de primeiro andar, tocando-se lançaram labaredas. A menina assustou-se e recuou. Foram só dois pequenos passos… e, aos seus pés, caiu a pesadíssima bandeira da janela, numa amálgama de caixilhos e pedaços de vidro. “Mãe!” – gritou – e a mãe, que já vinha, assustada com o barulho, olhou a confusão e disse calmamente “Pronto, não aconteceu nada”- e era a mãe a sossegá-la. A menina sentiu que poderia ter acontecido… Muitos anos mais tarde, quando viu este quadro pela primeira vez, lembrou-se do que acontecera e não há vez nenhuma em que o olhe, que não se veja assustada a olhar a janela partida, no chão do quarto. Será pela figura da mulher, quase um retângulo, feito de formas geométricas semelhantes às da bandeira da janela, um sofisticado trabalho de vidrinhos e caixilhos, que a evocação acontece? Não sabe, nem isso importa. Importante, para ela, é estar aqui a contar-lhe que esta janela lhe lembra um acaso feliz da sua vida.
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Muito a propósito (parece-me)desta janela de Pablo Picasso e, de modo geral, de um blog de tantas janelas, transcrevo um poema de Manuel António Pina, com o título "La fenêtre eclairée":
A realidade é uma hipótese repugnante,/
fora de mim, entrando por mim a dentro,/
solidão errante/
orfã de centro./
Que respostas vos darei,/
coisas, se tudo é de mais,/
se em vós procurei/
o que em mim procurais?/
Um espelho, um olhar/
onde me ver,/
um silêncio onde escutar/
as minhas palavras; algo como uma vida para viver./
Se estais também sós,/
assustadas e hostis,/
como eu em vós?
- Todas as palavras, 2012, Lx, Assírio & Alvim, p. 236 -
Três anos após este quadro ter sido pintado, uma menina, junto à vidraça da enorme janela de seu quarto, pasmava com as fortes bátegas da chuva torrencial que caíam. O vento soprava assustador. Tal era a força que os fios elétricos localizados junto às telhas do prédio, bem perto do topo daquela janela de primeiro andar, tocando-se lançaram labaredas. A menina assustou-se e recuou. Foram só dois pequenos passos… e, aos seus pés, caiu a pesadíssima bandeira da janela, numa amálgama de caixilhos e pedaços de vidro.
“Mãe!” – gritou – e a mãe, que já vinha, assustada com o barulho, olhou a confusão e disse calmamente “Pronto, não aconteceu nada”- e era a mãe a sossegá-la. A menina sentiu que poderia ter acontecido…
Muitos anos mais tarde, quando viu este quadro pela primeira vez, lembrou-se do que acontecera e não há vez nenhuma em que o olhe, que não se veja assustada a olhar a janela partida, no chão do quarto.
Será pela figura da mulher, quase um retângulo, feito de formas geométricas semelhantes às da bandeira da janela, um sofisticado trabalho de vidrinhos e caixilhos, que a evocação acontece? Não sabe, nem isso importa. Importante, para ela, é estar aqui a contar-lhe que esta janela lhe lembra um acaso feliz da sua vida.
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