sexta-feira, 21 de outubro de 2011

À janela de Garrett

Para mais realçar a belleza do quadro, ve-se por entre um claro das árvores a janella meia aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada―com certo ar de confôrto grosseiro, e carregada na côr pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. 
A janella é larga e baixa; parece mais ornada e tambem mais antiga que o resto do edificio que todavia mal se ve... Interessou-me aquella janella. Quem terá o bom gôsto e a fortuna de morar alli? Parei e puz-me a namorar a janella. Incantava-me, tinha-me alli como n'um feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por de traz... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!.. era completo o romance.
Como hade ser bello ver pôr o sol d'aquella janella!.. E ouvir cantar os rouxinoes!.. E ver raiar uma alvorada de maio!.. Se haverá alli quem a aproveite, a deliciosa janella?.. quem apprecie e saiba gosar todo o prazer tranquillo, todos os sanctos gosos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em tôrno?
Se fôr homem é poeta; se é mulher está namorada. 

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra. Lisboa, Tipografia da Gazeta dos Tribunais, 1846.

2 comentários:

Isabel X disse...

A possibilidade de imaginar que a janela (meia aberta) permite. Aí reside o seu admirável encanto. Almeida Garrett vai apontando hipóteses sobre o que para lá da janela pode haver...

É o intervalo que conta. Aquele lugar, o que nele está disposto, e a sensação que acontece em quem o vê e imagina.
A janela o o seu efeito em Garrett. O que em Garrett a janela é ou se torna.
Fascinante!

- Isabel X -

Vasco Tomás disse...

A janela da Joaninha é um lexema cujo significado vai muito além da sua literalidade. Lugar de intermitência que torna possível a contemplação do seu exterior, num arrebatamento de sedução, ela é um espaço erótico por excelência onde uma figura feminina aparece para logo desaparecer (cf. Barthes sobre o erótico.
Abertura ao exterior de uma paisagem luxuriante, é uma promessa de um enamoramento, sendo por isso que é objecto de um namoro por parte do contemplante.
Mas essa janela é também portadora do pharmakon (cf. o Pharmakon de Platão, Derrida) objecto com o poder de curar (a fome de amor) e o poder de envenar a vida tanto de Joaninha (a loucura) e de Carlos (ferido em combate pelos lealistas).
Afinal, o amor é apenas infeliz no contexto da Guerra, ou é esta a sua condição perene?