O meu último fetichismo
Fui a Boston a um congresso e perdi-me outra vez na enorme sala de exposição de livros. Não resisti. Saí de lá doutor, que é como a má-língua lusitana chama um burro carregado deles. Agora, estão aí pelo chão. Não tenho onde pô-los.
Ainda não me chegaram os volumes que remeti de barco aquando da minha última passagem por Lisboa, e uma amiga minha que lá foi passar o Natal levou já uma nova lista de encomendas. Só falta dizer que, antes de começar esta crónica, estive na minha casa local de prostituição - a livraria da universidade, onde enterro o dinheiro do meu vício. Costumo dizer que foi nela que me formei, mas sai cara uma formatura dessas. Nunca mais tem fim. Há sempre um livro excitante a piscar-me o olho de uma prateleira. Como há também sempre um amigo a impor-me a obrigação cultural de ler a obra X, e um colega a insistir no não poder eu deixar de conhecer o livro Y. Adquiro-os. Vão para os montes de livros a ler urgentemente. Pelo menos até me desencantarem e lhes procurar um espaço no estante.
Creio já ter revelado algures esse segredo íntimo: não tenho, de facto, livros virgens, mas muitos ficaram-se no primeiro encontro. Ou desencontro. Na livraria, no catálogo, ou na recensão do crítico pareciam tão apetitosos. Vai a gente comprá-los, começa a lê-los e... eis mais um a ocupar espaço nas prateleiras. Isto é, quando havia. Agora, vão ficando também pelo chão a estender a cordilheira dos que lá estavam.
Isso! É o espaço - ou a falta dele - que queria choramingar aqui. Não sei que mais fazer e talvez algum leitor tenha qualquer solução engenhosa. Porque uma casa pode ter uma biblioteca, mas não é uma biblioteca. De vez em quando, faço uma ronda às prateleiras, encho dois ou três caixotes dos aparentemente mais dispensáveis e levo-os para a garagem ou para o sótão. Evidentemente que no dia seguinte é infalível eu precisar de um deles. Pior ainda: necessito exactamente do que ficou mais no fundo do caixote.
[...] Durante anos lamentei-me dos livros emprestados que não me eram nunca devolvidos. Queixa unilateral, admito, porque sou infractor grave neste domínio perante a biblioteca da universidade. Os professores têm direito a reter em casa os livros durante oito meses, ao fim dos quais o computador central envia directamente para o correio um aviso a notificar o término do prazo e a solicitar a devolução do livro em causa, ou a renovação do contrato por mais oito meses. Nas bibliotecas acontece-me como nas livrarias - essa vontade enorme de ler os livros todos, mas que, ao chegar a casa, enfraquece por haver outros mais interessantes ou obrigatórios na frente. Acabo decidindo ficar com eles por mais oito meses. E outros tantos. E outros mais. Uma vez que o sistema computorizado me permite receber um aviso em casa quando outro utente necessita do livro, não dá para ter remorsos. Se não chega nenhum, eles vão ficando. A encher as prateleiras e o chão.
[...] Há tempos para cá deixei de queixar-me de não me devolverem os livros. Ao menos tenho mais espaço. É uma solução triste. Pior: uma resignação. Acabei aos poucos por desprender-me desse meu último fetichismo. (Livre-se algum credor de livros meus, que esteja a ler esta crónica, de acreditar nisso! Tenha vergonha e devolva-me já o que não lhe pertence!) Podem levar todos um por um. Bem, com a excepção de um que não me pertence. Aliás, de livro tem só a aparência externa. É um estratagema para esconder algumas jóias da minha mulher. Adquiriu-o não sei onde. Por fora, tem todo o aspecto de um livro encadernado. Abre-se e o recheio é outro. O truque tem resultado e creio assim continuará, pelo menos enquanto não houver ladrões bibliómanos.
Roubar livros é coisa rara, mas acontece. Um dia, num aeroporto, chega-me a bagagem com falta de um caixote de livros. Ninguém sabia do seu paradeiro. Mandaram-me voltar no dia seguinte. E no outro. E no outro. Já a barafustar com a ineficácia dos serviços e o ar de importância aparvalhada do funcionário, dou de repente com um volume num canto do escritório, semiaberto e com falta de livros. Todo defensivo, o homem garante-me da sua honestidade e dos seus funcionários. Aceitei prontamente a palavra. Não. Nada neste mundo me faria acreditar que teria sido ele ou alguém daquela repartição. Quem dali teria qualquer interesse em roubar livros? - acalmei eu o senhor.
Levem-mos, pois, emprestados. Arranjem-me espaço. Sempre é uma solução melhor do que a sugerida pelo Jimmy, o encarregado da limpeza do meu gabinete na universidade. Ao ver-me uma vez completamente sepultado entre papéis e livros, e ao ouvir-me pedir-lhe desculpa daquele cenário, alegando incapacidade de dar conta de tanta tralha, comentou: "Se fosse eu, resolvia isso tudo num instante." Levantei a cabeça à espera do segredo, que, após breve pausa, lhe saiu lacónico e (suponho) convicto: "Com um fósforo!"
Almeida, Onésimo Teotónio, Que nome é esse, ó Nézimo? E outros advérbios de dúvida. Edições Salamandra, Lisboa 1994, pp. 43-47.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
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