Em todas as vidas existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda a palavra há qualquer coisa que fica por exprimir. O carácter é a obscura força que se assume como guardiã desta vida intocada: vela atentamente por aquilo que nunca foi, e, sem que o queiras, inscreve no teu rosto a marca disso. Por esta razão, a criança recém-nascida parece já ter semelhanças com o adulto: de facto, não há nada de igual entre esses dois rostos, a não ser, num como no outro, aquilo que não foi vivido.
A comédia do carácter: no momento em que a morte arranca das suas mãos o que estas tenazmente escondem, aquilo de que se apodera é apenas uma máscara. Neste momento, o carácter desaparece: no rosto do morto já não há marcas do que não foi vivido, as rugas gravadas pelo carácter alisam-se. Assim se brinca com a morte: ela não tem nem olhos nem mãos para o tesouro do carácter. Este tesouro - aquilo que nunca foi - é recolhido pela ideia de felicidade. Ela é o bem que a humanidade recebe das mãos do carácter.
Giorgio Agamben, A Ideia da Prosa. Lisboa, Cotovia, 1999. p. 89.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
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