domingo, 30 de agosto de 2009

De longe e não de perto

Estou de acordo, o homem é um animal essencialmente criador, predestinado a aspirar a um fim na vida conscientemente e a dedicar-se à arte da engenharia, ou seja, a abrir para si mesmo um caminho, eterna e ininterruptamente seja para onde for. Mas talvez lhe apeteça às vezes desviar-se para qualquer lado, precisamente porque é obrigado a abrir esse caminho, e também porque, por mais tolo que seja quem age directamente, talvez lhe aconteça de vez em quando pensar que esse caminho vai sempre seja para onde for, e que o principal não consiste em que direcção segue, mas no próprio facto de seguir, e em que a criança de boa moral não despreze a arte da engenharia e não se dedique à folga nociva que, como se sabe, é a mãe de todos os males. O homem gosta de criar e construir caminhos, é indiscutível. Mas porque gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? Vá, digam lá! Porém, acerca disto gostaria eu próprio de dizer duas palavrinhas especiais. Não será possível que o homem goste da destruição e do caos (porque indiscutivelmente às vezes gosta, nada a fazer) porque tem um medo instintivo de alcançar o objectivo e concluir a construção do edifício? Talvez só de longe goste do edifício e não de perto. Talvez apenas goste de construí-lo e não de viver nele, oferecendo-o depois, aux animaux domestiques, ou seja, às formigas, aos carneiros, etc., etc.

Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007. p. 53-54.

2 comentários:

Isabel X disse...

Tudo menos isso! Se houver a capacidade, mesmo, de construir um edifício, nunca este deve ser deixado pelo construtor "às formigas, aos carneiros, etc., etc."
Mas...
e se o objectivo (alento)que o construtor colocou na construção é outro além de vir a viver no edifício que construiu? Significará isso forçosamente que só gosta dele de longe e não de perto?
Não somos russos,somos portugueses.
O perto e o longe são diferentes para nós: complementam-se, não se contradizem ou contrariam.
Em português pergunta-se: "Sabes que no amor, o tempo e a distância não têm valor?"
Há também a questão da saudade ser o amor do que está longe, inatingível, e do amor ser a saudade do que está perto, inatingível (porque nunca o sujeito apreende inteiramente o objecto do seu amor).
Somos mais dispersos...
Daí a dificuldade em construirmos um caminho do qual saibamos o fim logo à partida.
Mas isso não significa que desistamos da construção e de nela virmos a viver. O mesmo para o caminho. Apenas fazemos tudo isso à nossa maneira...
Dá muito que pensar este texto. Agradeço-lho: é sempre bom pensar!
- Isabel X -

Anónimo disse...

AS contradições do ser humano.
MV