[A quem justamente se não rende a capacetes.]
Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Nzdima emitiu as maiores suspeitas:- E vai ficar em casa de quem?
- Fico no hotel, avó.
- Hotel? Mas é casa de quem?
Explicar como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova desconfiança: uma casa de ninguém?
- Ou melhor, avó: é de quem paga - palavreei para a tranquilizar.
Porém, só agravei - um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma casa como essa?
A mim me tinha cabido um prémio do Ministério. Eu tinha sido o melhor professor rural. E o prémio era visitar a grande cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não se impressionou com o meu orgulho. E franziu a voz:
- E, lá, quem te faz o prato?
- Um cozinheiro, avó.
- Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegura a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de quem nem o rosto se conhece.
- Cozinhar não é um serviço, meu neto - disse ela - Cozinhar é um modo de amar os outros.
Mia Couto, O Fio das Missangas. Contos.3ª ed. Lisboa, Caminho, 2004. p. 127-128
2 comentários:
Valores do amor...
Será que nos esquecemos da sua existencia!?...
Um acaso, também estou a ler Mia Couto.
Um Abraço
João Ramos Franco
Mensagem profundíssima quase disfarçada na linguagem muito específica de Mia Couto, mais uma habilidade sua do que qualquer outra coisa. Ainda assim, subscrevo a frase final: "Cozinhar é um modo de amar os outros." Eu que tanto gosto de cozinhar e que só consigo fazê-lo para os outros; só para mim: nunca! Mesmo a cozinhar não podemos abdicar dos nossos princípios!
- Isabel X -
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