sexta-feira, 22 de junho de 2012

Registo


Três palavras, a primeira das quais para agradecer a presença do Senhor Presidente da Câmara e dos senhores vereadores, dos senhores membros do Conselho Geral da Fundação Cidade de Guimarães, dos representantes dos nossos parceiros, dos senhores convidados, e de todos vós.
Este é um momento que merece uma especial ênfase, na programação da CEC. Foi possível com a colaboração de Serralves e quero agradecer à presidência e direcção desta instituição prestigiada a sua disponibilidade e empenho na concretização deste projecto.
Uma palavra muito especial de agradecimento a João Fernandes, curador desta exposição, a quem aproveito também para felicitar pelas responsabilidades que vai assumir em breve e que premeia a qualidade e pertinência do seu trabalho e honra Portugal, designadamente o Portugal que não se deixa encerrar em si próprio.
A terceira palavra é para o autor de quem hoje nos orgulhamos de apresentar uma nova criação, Monsieur Christian Boltanski. Estamos muito honrados também pela sua presença neste acto formal, bem como pela proximidade com que acompanhou a montagem da sua obra.
Também quero agradecer ao Director da Escola de Belas Artes do Porto, Prof. Francisco Laranjo, a escolha desta ocasião para fazer a entrega da Medalha das Belas Artes ao artista Christian Boltanski.
Não vou falar desta criação, pois não é esse o meu encargo e muito menos a minha competência. Mas permitam-me que evoque, perante esta instalação que nos interpela tão fundamente, a obra de Raul Brandão.
Não sei se M. Boltanski conhece o Húmus, uma espécie de diário escrito em Guimarães, tendo como pano de fundo a cidade e o tempo da primeira Guerra Mundial. Os paralelismos com esta evocação são tão fortes, que eu não resisto a ler [numa tradução mais literal que literária].

Aqui não andam só os vivos - andam também os mortos. A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem com se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares. Sob um grito outro grito, sob uma pedra outra pedra. Debalde todos os dias repelimos os mortos - todos os dias os mortos se misturam à nossa vida. E não nos largam.

Eis a vila abjecta, a vila banal onde se praticam todos os dias as mesmas acções e se repetem todos os dias os mesmos gestos... Aqui só há um pensamento fundamental: fugir à morte, que é a mais viva de todas das realidades, que é talvez a única realidade. Protestar, contra as forças desabaladas, pelo sonho, em espírito ou em pedra, que se erga diante do Destino e desafie o destino.
 [Húmus, edição critica, p. 197]

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.
Eu não sou nada. Sou um minuto e a eternidade. Sou os mortos.
[p. 213]

Bem sei que isto de ser homem é duma grande responsabilidade. Tem prós e contras terríveis. Também sei que o que nos separa dos bichos não é a inteligência. A inteligência é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos a mentira como se fosse verdade. O que nos mantém neste inferno é a arquitectura artificial, é o facto de não nos vermos tal qual somos, baseados numa convenção que julgamos indestrutível. De não nos vermos a nós e de não os vermos a eles. Porque o homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos fantasmas, somos afinal só fantasmas, e o que construímos não cabe entre as quatro paredes da matéria.
[p. 171]

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