No ano em que, nesta cidade,
Portugal se faz mais europeu e a Europa conhece melhor Portugal, evocamos, hoje,
Guimarães
como terra de Fundação da Nacionalidade. Lugar de origens e de começos, disso se orgulha
legitimamente, honrando e actualizando um património imperecível.
Como tantas vezes sucede com
os grandes acontecimentos que fundam um tempo e uma memória colectiva, o valor simbólico impõe-se neles à própria história. O inicial torna-se iniciático.
A Batalha de S. Mamede, de 24
de Junho de 1128, pela qual o jovem cavaleiro Afonso Henriques se apoderou do
legado de sua mãe,
foi um desses acontecimentos. Como salienta José Mattoso, o 24 de Junho é, desde tempos imemoriais, uma
data “carregada
de simbolismo”,
assinalando “uma
mutação cósmica marcada pelo solstício”, que faz dele “o dia mais longo do ano”. Consagrado à veneração de São João Baptista, o “precursor do Messias” e aquele “que anuncia a sua vinda
iminente”,
nesse dia de 1128 um novo reino também se anunciou, com a vitória, nestas terras, do príncipe fundador.
Guimarães voltaria a estar presente,
em circunstâncias
e épocas
distintas, nos caminhos da independência portuguesa. Foi assim em 1385, quando o Mestre de Avis
conseguiu trazer Guimarães para o seu partido, antes de ser chamado a Aljubarrota.
Por isso, a vitória
da independência
quis ele celebrá-la aqui,
aonde de imediato regressou para oferecer à colegiada da Oliveira, além dos objectos mais valiosos
do despojo da batalha, o laudel usado pelo guerreiro, nas palavras de Fernão Lopes “semeado de rodas de ramos e
tendo em meio outras rodas e escudos de São Jorge”.
Foi assim também em 1808, quando o corregedor
da comarca convocou o povo para aclamar D. João VI. O Regente tinha deixado
Lisboa pelo Rio de Janeiro, perante a ameaça do exército napoleónico. Estávamos a 18 de Junho, dois dias depois da festa do Corpo de
Deus, transformada num cortejo de sátira e desafio aos ocupantes franceses.
As crises nacionais apelam aos
valores da identidade, da tradição e da representação da Pátria. Inseguros num presente incerto, os povos procuram
segurança
numa história
que firme a continuidade e reforce a coesão. Daí até ao mito, a distância é curta.
Orgulhosa do seu privilégio histórico e simbólico, Guimarães não faz, contudo, do seu passado
glorioso uma inércia.
Sabe olhar o futuro desse passado com arrojo e lucidez.
Como se escreveu no O Guia de Portugal, na cidade convivem
duas forças.
Aos traços da
cidade histórica,
condicionada por uma herança física medieval, contrapõem-se os da cidade mercantil e industrial, que tem
atravessado, desde o século XVII, as várias etapas tecnológicas e organizativas da produção industrial.
É com esta dupla feição, expressa em diferentes campos
e modos, que Guimarães entra no século XXI. É com ela que interpreta e patenteia também o título de Capital Europeia da
Cultura.
A dimensão histórica configura o imaginário colectivo, modela a percepção que a cidade tem de
si-mesma, marca a paisagem e o património, deixa referências no tecido social. É um identificador e um eixo.
A dimensão industrial traz a experiência dos mercados e da
mobilidade, da construção, da destruição, da reconstrução. Da crise e da procura de novos processos e horizontes. É um impulsionador e uma roda
em movimento.
Se a primeira lida com a memória e a perenidade, a segunda
lida com a instabilidade e o risco.
Ao longo dos tempos modernos,
uma extraordinária
geração de
intelectuais e criadores afirmou-se em Guimarães, reflectindo sobre as
resultantes e combinatórias desta realidade complexa. De Francisco Martins
Sarmento a Alberto Sampaio, de Abel Salazar a Raul Brandão, de Alfredo Pimenta a
Joaquim Novais Teixeira, de Fernando Távora e Nuno Portas a José de Guimarães, estes são alguns dos nomes que
projectaram a cidade além do seu espaço e do seu tempo. Por eles, a cidade foi interpelada, no
repto de se abrir a uma experiencia mais ampla e diversa, que é a da criação cultural e do conhecimento.
A Capital Europeia da Cultura
assumiu o ambicioso encargo de intervir sobre este dualismo vimaranense,
contribuindo, senão
para o superar, pelo menos, para o situar num patamar diferente.
Esse desafio, que assumimos
com responsabilidade, empenho e também prazer, pode ser assim sintetizado: proporcionar aos
cidadãos
novas formas de “ler” e de viver a cidade, novas
maneiras de ser sujeito do processo criativo; reforçar a abertura à Europa e ao mundo, propondo
novos paradigmas e novos horizontes; dar à cultura o lugar de parceiro insubstituível no processo da mudança económica e social.
Para a sua Capital Europeia, a
cultura é
inseparável
da vida e visa o seu aperfeiçoamento, a sua abertura ao novo. É liberdade, energia, movimento,
conhecimento, criação. Em cada programa, em cada projecto, em cada realização, há este entendimento que liga
cultura e cidade, criação e existência, pensamento e experiência.
A
Plataforma das Artes e da Criatividade pretende colocar Guimarães nos circuitos relevantes da
arte contemporânea
internacional, reforçar o seu lugar nas redes de exibição artística mais exigentes e
contribuir para o diálogo cultural entre a Europa e outros continentes. Neste
momento de regozijo, é justo salientar que esta obra complexa foi concretizada nos
prazos fixados - bem apertados, aliás.
Quero,
Sr. Presidente da Câmara, felicitá-lo por isso, incluindo neste voto também todas as equipas, dos
projectistas aos construtores e aos técnicos das mais diversas especialidades da Câmara e da Oficina, que deram o
seu melhor, com empenho total, para que hoje pudéssemos tomar posse de mais um
grande ponto de encontro da cidade.
Por
estes tempos já
detidos que levo de imersão completa na vida de Guimarães, parte do qual em trabalho
estreito com o Dr. António Magalhães, posso testemunhar o quanto a sua liderança esclarecida, a sua
combatividade sem desfalecimento, a sua visão estratégica estão na base da regeneração bem sucedida desta cidade e
da sua projecção
externa.
A Fundação Cidade de Guimarães tem
beneficiado do entendimento do Presidente sobre o papel das políticas públicas
de cultura, suportado na determinação e experiencia e orientação acumuladas em
quem tem dirigido o pelouro da cultura.
Sem a linha directa que soube abrir e
manter, sem a cumplicidade, que se alimenta da análise conjunta dos problemas,
e sem o apoio constante de V. Ex.ª, o meu trabalho e das equipas da Fundação a que tenho a honra de
presidir teria sido muito mais difícil e menos conseguido.
Estas minhas palavras ocultam mais do
que revelam do quanto Guimarães 2012, na difícil conjuntura que vivemos, tem
beneficiado da justa compreensão e, atrevo-me a dizer, da confiança, de V. Ex.ª
no que aqui fazemos, em nome do país e do seu lugar na Europa.
A
Capital Europeia da Cultura está agora a meio da sua trajectória. Sem prejuízo do balanço que será feito oportunamente, creio
poder afirmar que cumprimos tanto aquilo que nos foi pedido como o que nos
comprometemos a fazer.
Agradecendo,
Senhor Ministro da Defesa, a sua presença nesta cerimónia, peço que transmita ao Senhor Primeiro Ministro e ao Governo a
garantia de que, com realismo mas com ambição, enfrentamos dificuldades e congregamos esforços para cumprir o mandato
nacional recebido.
Neste
tempo de perplexidades, de preocupações e de perigos, em que, muitas vezes, o que mais prezamos
parece ameaçado, é altura, em Guimarães, Capital Europeia da
Cultura, de reafirmarmos uma convicção: a de que a crise económica e financeira que a Europa
vive, exige, antes de mais, uma grande resposta cultural – e uma corajosa resposta de
cidadania cultural.
Uma
resposta ousada, ao mesmo tempo fiel à realidade e ao sonho de a tornar melhor.
Sem
essa resposta, nada de humanamente duradouro e profundo poderá ser alcançado. Porque, como disse André Malraux, “a cultura não se herda, conquista-se”.
A tradição mais conservadora nunca
conviveu bem com a mensagem rebelde e insubmissa deste dia. Por isso, pouco
tempo depois, a narrativa dominante foi exaltando a figura de Egas Moniz, em
detrimento da do cavaleiro impiedoso, secundarizando o episódio de S. Mamede, em favor de
batalha de Ourique.
Apenas muitos séculos depois, devemos a Alexandre
Herculano, nesse texto refundador
que é a
sua História
de Portugal,
a devolução a
Guimarães da
sua primazia e a interpretação do acontecimento histórico que aqui se deu mais como
acção
colectiva do que como feito individual.
No romance O Bobo, escrito nos anos 40 do século XIX, num tempo de crise
europeia e de dissidência interna, Herculano considera que outro teria sido o
destino do condado se outro tivesse sido o desfecho de S. Mamede. “Era necessário que no último ocidente da Europa
surgisse um povo, cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de
imaginação
ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou
correr por cima delas envoltos no temporal”. Do campo de
S. Mamede, Herculano avista já o mar dos Descobrimentos.
Para o grande historiador,
cada presente escreve-se com algumas letras do alfabeto do passado. Por isso,
pergunta: e agora? Restar-nos-á alguma coisa mais do que o passado para nos “revocar à energia social”? A essa pergunta, responde: é importante o passado e
devemos estudá-lo e
preservar o património histórico. Mas acrescenta: há outro estímulo fundamental, o da criação artística. “Que a Arte – exorta Herculano - em todas
as suas formas externas represente este nobre pensamento; que o drama, o poema,
o romance sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa terra.”
João Serra
3 comentários:
Caro Professor,
Quando diz: "Guimarães voltaria a estar presente, em circunstâncias e épocas distintas, nos caminhos da independência portuguesa. Foi assim em 1385, quando o Mestre de Avis conseguiu trazer Guimarães para o seu partido, antes de ser chamado a Aljubarrota".
Ora bem, a título de esclarecimento, ao contrário do que Professor diz, Guimarães aderiu, como um todo, ao "partido" de D.João I, não antes de aljubarrota, mas sim depois, em 1389.
Parabéns pelo discurso. Ninguém notou esta gralha:)
Como nós, os mais de trinta que eramos - lastimámos não termos podido ouvir este discurso, no momento em que o proferiu!
Alguns ficaram por perto da Plataforma das Artes, na esperança de disfrutar do possível. Inclui-me nos que rumaram a outras paragens.
Que palavras magníficas, Prof! Orgulhar-se-á Guimarães que tenha abraçado o ambicioso projeto: Guimarães, Capital Europeia da Cultura e dele se tenha enamorado como um vimaranense, senão “de gema”, pois o acaso não permitiu que aí nascesse, mas “de clara”, pois terá abraçado a tarefa numa clara opção de vida.
Em relação ao comentário expresso, vergo-me perante a honestidade intelectual, a humildade e a generosidade que o fizeram publicá-lo.
Não o cumprimento Prof. Admiro-o!
Se não fora o "senão" em vez de "se não" não haveria um pegada de rinoceronte nos canteiros deste jardim.
O "pecado" é capital... mas, perdoe pela "originalidade" (bem sei que duvidosa), que confere ao seu blog. :)
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