domingo, 24 de junho de 2012

Registo


No ano em que, nesta cidade, Portugal se faz mais europeu e a Europa conhece melhor Portugal, evocamos, hoje, Guimarães como terra de Fundação da Nacionalidade. Lugar de origens e de começos, disso se orgulha legitimamente, honrando e actualizando um património imperecível.
Como tantas vezes sucede com os grandes acontecimentos que fundam um tempo e uma memória colectiva, o valor simbólico impõe-se neles à própria história. O inicial torna-se iniciático.
A Batalha de S. Mamede, de 24 de Junho de 1128, pela qual o jovem cavaleiro Afonso Henriques se apoderou do legado de sua mãe, foi um desses acontecimentos. Como salienta José Mattoso, o 24 de Junho é, desde tempos imemoriais, uma data “carregada de simbolismo”, assinalando “uma mutação cósmica marcada pelo solstício”, que faz dele “o dia mais longo do ano”. Consagrado à veneração de São João Baptista, o “precursor do Messias” e aquele “que anuncia a sua vinda iminente”, nesse dia de 1128 um novo reino também se anunciou, com a vitória, nestas terras, do príncipe fundador.
Guimarães voltaria a estar presente, em circunstâncias e épocas distintas, nos caminhos da independência portuguesa. Foi assim em 1385, quando o Mestre de Avis conseguiu trazer Guimarães para o seu partido, antes de ser chamado a Aljubarrota. Por isso, a vitória da independência quis ele celebrá-la aqui, aonde de imediato regressou para oferecer à colegiada da Oliveira, além dos objectos mais valiosos do despojo da batalha, o laudel usado pelo guerreiro, nas palavras de Fernão Lopes “semeado de rodas de ramos e tendo em meio outras rodas e escudos de São Jorge”.
Foi assim também em 1808, quando o corregedor da comarca convocou o povo para aclamar D. João VI. O Regente tinha deixado Lisboa pelo Rio de Janeiro, perante a ameaça do exército napoleónico. Estávamos a 18 de Junho, dois dias depois da festa do Corpo de Deus, transformada num cortejo de sátira e desafio aos ocupantes franceses.
As crises nacionais apelam aos valores da identidade, da tradição e da representação da Pátria. Inseguros num presente incerto, os povos procuram segurança numa história que firme a continuidade e reforce a coesão. Daí até ao mito, a distância é curta.
Orgulhosa do seu privilégio histórico e simbólico, Guimarães não faz, contudo, do seu passado glorioso uma inércia. Sabe olhar o futuro desse passado com arrojo e lucidez.
Como se escreveu no O Guia de Portugal, na cidade convivem duas forças. Aos traços da cidade histórica, condicionada por uma herança física medieval, contrapõem-se os da cidade mercantil e industrial, que tem atravessado, desde o século XVII, as várias etapas tecnológicas e organizativas da produção industrial.
É com esta dupla feição, expressa em diferentes campos e modos, que Guimarães entra no século XXI. É com ela que interpreta e patenteia também o título de Capital Europeia da Cultura.
A dimensão histórica configura o imaginário colectivo, modela a percepção que a cidade tem de si-mesma, marca a paisagem e o património, deixa referências no tecido social. É um identificador e um eixo.
A dimensão industrial traz a experiência dos mercados e da mobilidade, da construção, da destruição, da reconstrução. Da crise e da procura de novos processos e horizontes. É um impulsionador e uma roda em movimento.
Se a primeira lida com a memória e a perenidade, a segunda lida com a instabilidade e o risco.
Ao longo dos tempos modernos, uma extraordinária geração de intelectuais e criadores afirmou-se em Guimarães, reflectindo sobre as resultantes e combinatórias desta realidade complexa. De Francisco Martins Sarmento a Alberto Sampaio, de Abel Salazar a Raul Brandão, de Alfredo Pimenta a Joaquim Novais Teixeira, de Fernando Távora e Nuno Portas a José de Guimarães, estes são alguns dos nomes que projectaram a cidade além do seu espaço e do seu tempo. Por eles, a cidade foi interpelada, no repto de se abrir a uma experiencia mais ampla e diversa, que é a da criação cultural e do conhecimento.
A Capital Europeia da Cultura assumiu o ambicioso encargo de intervir sobre este dualismo vimaranense, contribuindo, senão para o superar, pelo menos, para o situar num patamar diferente.
Esse desafio, que assumimos com responsabilidade, empenho e também prazer, pode ser assim sintetizado: proporcionar aos cidadãos novas formas de “ler” e de viver a cidade, novas maneiras de ser sujeito do processo criativo; reforçar a abertura à Europa e ao mundo, propondo novos paradigmas e novos horizontes; dar à cultura o lugar de parceiro insubstituível no processo da mudança económica e social.
Para a sua Capital Europeia, a cultura é inseparável da vida e visa o seu aperfeiçoamento, a sua abertura ao novo. É liberdade, energia, movimento, conhecimento, criação. Em cada programa, em cada projecto, em cada realização, há este entendimento que liga cultura e cidade, criação e existência, pensamento e experiência.
 A celebração do 24 de Junho deste ano memorável de 2012 tem um significado e um alcance ímpares. A cidade acrescenta aos espaços de que já dispõe, um novo equipamento cultural, inspirado pelo exemplo de curiosidade, dedicação, rigor e criatividade que nos é dado por José de Guimarães. Fiel às raízes, o pintor fortalece a ligação à sua terra natal da maneira mais autêntica, fecunda e prospectiva. Esta Casa, renovando esse exemplo, vai ser também um lugar de trabalho, de experimentação, de criação artística, de cruzamento de saberes e de fazeres.
A Plataforma das Artes e da Criatividade pretende colocar Guimarães nos circuitos relevantes da arte contemporânea internacional, reforçar o seu lugar nas redes de exibição artística mais exigentes e contribuir para o diálogo cultural entre a Europa e outros continentes. Neste momento de regozijo, é justo salientar que esta obra complexa foi concretizada nos prazos fixados - bem apertados, aliás.
Quero, Sr. Presidente da Câmara, felicitá-lo por isso, incluindo neste voto também todas as equipas, dos projectistas aos construtores e aos técnicos das mais diversas especialidades da Câmara e da Oficina, que deram o seu melhor, com empenho total, para que hoje pudéssemos tomar posse de mais um grande ponto de encontro da cidade.
Por estes tempos já detidos que levo de imersão completa na vida de Guimarães, parte do qual em trabalho estreito com o Dr. António Magalhães, posso testemunhar o quanto a sua liderança esclarecida, a sua combatividade sem desfalecimento, a sua visão estratégica estão na base da regeneração bem sucedida desta cidade e da sua projecção externa.
A Fundação Cidade de Guimarães tem beneficiado do entendimento do Presidente sobre o papel das políticas públicas de cultura, suportado na determinação e experiencia e orientação acumuladas em quem tem dirigido o pelouro da cultura.
Sem a linha directa que soube abrir e manter, sem a cumplicidade, que se alimenta da análise conjunta dos problemas, e sem o apoio constante de V. Ex.ª, o meu trabalho e das equipas da Fundação a que tenho a honra de presidir teria sido muito mais difícil e menos conseguido.
 Neste dia, e por ser de inteira justiça, quero dirigir um público e  reafirmado agradecimento a Vossa Excelência, Senhor Presidente da República pela forma próxima, apesar de discreta, cooperante e interessada, sem afectar o plano das suas funções institucionais, como tem acompanhado a nossa Capital Europeia da Cultura.
Estas minhas palavras ocultam mais do que revelam do quanto Guimarães 2012, na difícil conjuntura que vivemos, tem beneficiado da justa compreensão e, atrevo-me a dizer, da confiança, de V. Ex.ª no que aqui fazemos, em nome do país e do seu lugar na Europa.

A Capital Europeia da Cultura está agora a meio da sua trajectória. Sem prejuízo do balanço que será feito oportunamente, creio poder afirmar que cumprimos tanto aquilo que nos foi pedido como o que nos comprometemos a fazer.
Agradecendo, Senhor Ministro da Defesa, a sua presença nesta cerimónia, peço que transmita ao Senhor Primeiro Ministro e ao Governo a garantia de que, com realismo mas com ambição, enfrentamos dificuldades e congregamos esforços para cumprir o mandato nacional recebido.
Neste tempo de perplexidades, de preocupações e de perigos, em que, muitas vezes, o que mais prezamos parece ameaçado, é altura, em Guimarães, Capital Europeia da Cultura, de reafirmarmos uma convicção: a de que a crise económica e financeira que a Europa vive, exige, antes de mais, uma grande resposta cultural – e uma corajosa resposta de cidadania cultural.
Uma resposta ousada, ao mesmo tempo fiel à realidade e ao sonho de a tornar melhor.
Sem essa resposta, nada de humanamente duradouro e profundo poderá ser alcançado. Porque, como disse André Malraux, “a cultura não se herda, conquista-se”.
 Celebramos hoje, aqui, o dia fundador de Portugal.
A tradição mais conservadora nunca conviveu bem com a mensagem rebelde e insubmissa deste dia. Por isso, pouco tempo depois, a narrativa dominante foi exaltando a figura de Egas Moniz, em detrimento da do cavaleiro impiedoso, secundarizando o episódio de S. Mamede, em favor de batalha de Ourique.
Apenas muitos séculos depois, devemos a Alexandre Herculano, nesse  texto refundador que é a sua História de Portugal, a devolução a Guimarães da sua primazia e a interpretação do acontecimento histórico que aqui se deu mais como acção colectiva do que como feito individual.
No romance O Bobo, escrito nos anos 40 do século XIX, num tempo de crise europeia e de dissidência interna, Herculano considera que outro teria sido o destino do condado se outro tivesse sido o desfecho de S. Mamede. “Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo, cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envoltos no temporal”.  Do campo de S. Mamede, Herculano avista já o mar dos Descobrimentos.
Para o grande historiador, cada presente escreve-se com algumas letras do alfabeto do passado. Por isso, pergunta: e agora? Restar-nos-á alguma coisa mais do que o passado para nos “revocar à energia social”? A essa pergunta, responde: é importante o passado e devemos estudá-lo e preservar o património histórico. Mas acrescenta: há outro estímulo fundamental, o da criação artística. “Que a Arte – exorta Herculano - em todas as suas formas externas represente este nobre pensamento; que o drama, o poema, o romance sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa terra.”

João Serra

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Professor,

Quando diz: "Guimarães voltaria a estar presente, em circunstâncias e épocas distintas, nos caminhos da independência portuguesa. Foi assim em 1385, quando o Mestre de Avis conseguiu trazer Guimarães para o seu partido, antes de ser chamado a Aljubarrota".

Ora bem, a título de esclarecimento, ao contrário do que Professor diz, Guimarães aderiu, como um todo, ao "partido" de D.João I, não antes de aljubarrota, mas sim depois, em 1389.

Parabéns pelo discurso. Ninguém notou esta gralha:)

Isabel Soares disse...

Como nós, os mais de trinta que eramos - lastimámos não termos podido ouvir este discurso, no momento em que o proferiu!
Alguns ficaram por perto da Plataforma das Artes, na esperança de disfrutar do possível. Inclui-me nos que rumaram a outras paragens.
Que palavras magníficas, Prof! Orgulhar-se-á Guimarães que tenha abraçado o ambicioso projeto: Guimarães, Capital Europeia da Cultura e dele se tenha enamorado como um vimaranense, senão “de gema”, pois o acaso não permitiu que aí nascesse, mas “de clara”, pois terá abraçado a tarefa numa clara opção de vida.
Em relação ao comentário expresso, vergo-me perante a honestidade intelectual, a humildade e a generosidade que o fizeram publicá-lo.
Não o cumprimento Prof. Admiro-o!

Isabel Soares disse...

Se não fora o "senão" em vez de "se não" não haveria um pegada de rinoceronte nos canteiros deste jardim.
O "pecado" é capital... mas, perdoe pela "originalidade" (bem sei que duvidosa), que confere ao seu blog. :)