segunda-feira, 25 de junho de 2012

A vaia

A acção que em nome da CGTP foi efectivada no passado dia 24, em Guimarães, merece critica política democrática. Os seus responsáveis, do meu ponto de vista, deveriam ser citados ao contraditório nos órgãos próprios da democracia representativa, local e nacional.
Em primeiro lugar, não creio que tenham sido respeitadas as leis do Estado de Direito. Quem invoca a legalidade democrática deve começar por dar provas de a cumprir. O direito de manifestação está regulado e obriga a procedimentos de informação prévia e localização que não foram evidentemente acatados pelos promotores da manifestação.
Em segundo lugar, os símbolos nacionais estão constitucionalmente consagrados, e entre eles encontram-se o Presidente e o Hino. Os insultos aos Presidente e a sobreposição de palavras de ordem e apitos ao Hino são violações da Constituição.
Por outro lado, a racionalidade da acção política não é verificável. Se o objectivo era demonstrar capacidade de mobilização de massas, uma centena de pessoas é curto. Se o objectivo era contestar a promulgação do Código de Trabalho, como se compreendem os insultos ao Presidente e o desrespeito do Hino?
O que vimos foi uma acto voluntarista, inorgânico, sem enquadramento nem direcção política, inconsequente, tumultuoso.
Não pode ser olhado pela lado do direito de manifestação nem sequer do direito à indignação. De facto este ultimo, corporizado numa reacção às palavras do Presidente sobre as condições da sua reforma, já tinha sido expresso a 21 de Janeiro.
Agora, repetir os gestos e as frases de 21 de Janeiro, quando o Presidente vem a Guimarães celebrar a forma como cidade tem enfrentado problemas difíceis e exigentes, carece de sentido de oportunidade. Objectivamente, a acção de 24 de Junho foi contra Guimarães e contra a Capital Europeia da Cultura.
Marx, um filosofo alemão hoje menos lido do que merecia, alertou contra os riscos de repetir a história. A segunda tentativa tende a não passar de uma farsa.

domingo, 24 de junho de 2012

Registo


No ano em que, nesta cidade, Portugal se faz mais europeu e a Europa conhece melhor Portugal, evocamos, hoje, Guimarães como terra de Fundação da Nacionalidade. Lugar de origens e de começos, disso se orgulha legitimamente, honrando e actualizando um património imperecível.
Como tantas vezes sucede com os grandes acontecimentos que fundam um tempo e uma memória colectiva, o valor simbólico impõe-se neles à própria história. O inicial torna-se iniciático.
A Batalha de S. Mamede, de 24 de Junho de 1128, pela qual o jovem cavaleiro Afonso Henriques se apoderou do legado de sua mãe, foi um desses acontecimentos. Como salienta José Mattoso, o 24 de Junho é, desde tempos imemoriais, uma data “carregada de simbolismo”, assinalando “uma mutação cósmica marcada pelo solstício”, que faz dele “o dia mais longo do ano”. Consagrado à veneração de São João Baptista, o “precursor do Messias” e aquele “que anuncia a sua vinda iminente”, nesse dia de 1128 um novo reino também se anunciou, com a vitória, nestas terras, do príncipe fundador.
Guimarães voltaria a estar presente, em circunstâncias e épocas distintas, nos caminhos da independência portuguesa. Foi assim em 1385, quando o Mestre de Avis conseguiu trazer Guimarães para o seu partido, antes de ser chamado a Aljubarrota. Por isso, a vitória da independência quis ele celebrá-la aqui, aonde de imediato regressou para oferecer à colegiada da Oliveira, além dos objectos mais valiosos do despojo da batalha, o laudel usado pelo guerreiro, nas palavras de Fernão Lopes “semeado de rodas de ramos e tendo em meio outras rodas e escudos de São Jorge”.
Foi assim também em 1808, quando o corregedor da comarca convocou o povo para aclamar D. João VI. O Regente tinha deixado Lisboa pelo Rio de Janeiro, perante a ameaça do exército napoleónico. Estávamos a 18 de Junho, dois dias depois da festa do Corpo de Deus, transformada num cortejo de sátira e desafio aos ocupantes franceses.
As crises nacionais apelam aos valores da identidade, da tradição e da representação da Pátria. Inseguros num presente incerto, os povos procuram segurança numa história que firme a continuidade e reforce a coesão. Daí até ao mito, a distância é curta.
Orgulhosa do seu privilégio histórico e simbólico, Guimarães não faz, contudo, do seu passado glorioso uma inércia. Sabe olhar o futuro desse passado com arrojo e lucidez.
Como se escreveu no O Guia de Portugal, na cidade convivem duas forças. Aos traços da cidade histórica, condicionada por uma herança física medieval, contrapõem-se os da cidade mercantil e industrial, que tem atravessado, desde o século XVII, as várias etapas tecnológicas e organizativas da produção industrial.
É com esta dupla feição, expressa em diferentes campos e modos, que Guimarães entra no século XXI. É com ela que interpreta e patenteia também o título de Capital Europeia da Cultura.
A dimensão histórica configura o imaginário colectivo, modela a percepção que a cidade tem de si-mesma, marca a paisagem e o património, deixa referências no tecido social. É um identificador e um eixo.
A dimensão industrial traz a experiência dos mercados e da mobilidade, da construção, da destruição, da reconstrução. Da crise e da procura de novos processos e horizontes. É um impulsionador e uma roda em movimento.
Se a primeira lida com a memória e a perenidade, a segunda lida com a instabilidade e o risco.
Ao longo dos tempos modernos, uma extraordinária geração de intelectuais e criadores afirmou-se em Guimarães, reflectindo sobre as resultantes e combinatórias desta realidade complexa. De Francisco Martins Sarmento a Alberto Sampaio, de Abel Salazar a Raul Brandão, de Alfredo Pimenta a Joaquim Novais Teixeira, de Fernando Távora e Nuno Portas a José de Guimarães, estes são alguns dos nomes que projectaram a cidade além do seu espaço e do seu tempo. Por eles, a cidade foi interpelada, no repto de se abrir a uma experiencia mais ampla e diversa, que é a da criação cultural e do conhecimento.
A Capital Europeia da Cultura assumiu o ambicioso encargo de intervir sobre este dualismo vimaranense, contribuindo, senão para o superar, pelo menos, para o situar num patamar diferente.
Esse desafio, que assumimos com responsabilidade, empenho e também prazer, pode ser assim sintetizado: proporcionar aos cidadãos novas formas de “ler” e de viver a cidade, novas maneiras de ser sujeito do processo criativo; reforçar a abertura à Europa e ao mundo, propondo novos paradigmas e novos horizontes; dar à cultura o lugar de parceiro insubstituível no processo da mudança económica e social.
Para a sua Capital Europeia, a cultura é inseparável da vida e visa o seu aperfeiçoamento, a sua abertura ao novo. É liberdade, energia, movimento, conhecimento, criação. Em cada programa, em cada projecto, em cada realização, há este entendimento que liga cultura e cidade, criação e existência, pensamento e experiência.
 A celebração do 24 de Junho deste ano memorável de 2012 tem um significado e um alcance ímpares. A cidade acrescenta aos espaços de que já dispõe, um novo equipamento cultural, inspirado pelo exemplo de curiosidade, dedicação, rigor e criatividade que nos é dado por José de Guimarães. Fiel às raízes, o pintor fortalece a ligação à sua terra natal da maneira mais autêntica, fecunda e prospectiva. Esta Casa, renovando esse exemplo, vai ser também um lugar de trabalho, de experimentação, de criação artística, de cruzamento de saberes e de fazeres.
A Plataforma das Artes e da Criatividade pretende colocar Guimarães nos circuitos relevantes da arte contemporânea internacional, reforçar o seu lugar nas redes de exibição artística mais exigentes e contribuir para o diálogo cultural entre a Europa e outros continentes. Neste momento de regozijo, é justo salientar que esta obra complexa foi concretizada nos prazos fixados - bem apertados, aliás.
Quero, Sr. Presidente da Câmara, felicitá-lo por isso, incluindo neste voto também todas as equipas, dos projectistas aos construtores e aos técnicos das mais diversas especialidades da Câmara e da Oficina, que deram o seu melhor, com empenho total, para que hoje pudéssemos tomar posse de mais um grande ponto de encontro da cidade.
Por estes tempos já detidos que levo de imersão completa na vida de Guimarães, parte do qual em trabalho estreito com o Dr. António Magalhães, posso testemunhar o quanto a sua liderança esclarecida, a sua combatividade sem desfalecimento, a sua visão estratégica estão na base da regeneração bem sucedida desta cidade e da sua projecção externa.
A Fundação Cidade de Guimarães tem beneficiado do entendimento do Presidente sobre o papel das políticas públicas de cultura, suportado na determinação e experiencia e orientação acumuladas em quem tem dirigido o pelouro da cultura.
Sem a linha directa que soube abrir e manter, sem a cumplicidade, que se alimenta da análise conjunta dos problemas, e sem o apoio constante de V. Ex.ª, o meu trabalho e das equipas da Fundação a que tenho a honra de presidir teria sido muito mais difícil e menos conseguido.
 Neste dia, e por ser de inteira justiça, quero dirigir um público e  reafirmado agradecimento a Vossa Excelência, Senhor Presidente da República pela forma próxima, apesar de discreta, cooperante e interessada, sem afectar o plano das suas funções institucionais, como tem acompanhado a nossa Capital Europeia da Cultura.
Estas minhas palavras ocultam mais do que revelam do quanto Guimarães 2012, na difícil conjuntura que vivemos, tem beneficiado da justa compreensão e, atrevo-me a dizer, da confiança, de V. Ex.ª no que aqui fazemos, em nome do país e do seu lugar na Europa.

A Capital Europeia da Cultura está agora a meio da sua trajectória. Sem prejuízo do balanço que será feito oportunamente, creio poder afirmar que cumprimos tanto aquilo que nos foi pedido como o que nos comprometemos a fazer.
Agradecendo, Senhor Ministro da Defesa, a sua presença nesta cerimónia, peço que transmita ao Senhor Primeiro Ministro e ao Governo a garantia de que, com realismo mas com ambição, enfrentamos dificuldades e congregamos esforços para cumprir o mandato nacional recebido.
Neste tempo de perplexidades, de preocupações e de perigos, em que, muitas vezes, o que mais prezamos parece ameaçado, é altura, em Guimarães, Capital Europeia da Cultura, de reafirmarmos uma convicção: a de que a crise económica e financeira que a Europa vive, exige, antes de mais, uma grande resposta cultural – e uma corajosa resposta de cidadania cultural.
Uma resposta ousada, ao mesmo tempo fiel à realidade e ao sonho de a tornar melhor.
Sem essa resposta, nada de humanamente duradouro e profundo poderá ser alcançado. Porque, como disse André Malraux, “a cultura não se herda, conquista-se”.
 Celebramos hoje, aqui, o dia fundador de Portugal.
A tradição mais conservadora nunca conviveu bem com a mensagem rebelde e insubmissa deste dia. Por isso, pouco tempo depois, a narrativa dominante foi exaltando a figura de Egas Moniz, em detrimento da do cavaleiro impiedoso, secundarizando o episódio de S. Mamede, em favor de batalha de Ourique.
Apenas muitos séculos depois, devemos a Alexandre Herculano, nesse  texto refundador que é a sua História de Portugal, a devolução a Guimarães da sua primazia e a interpretação do acontecimento histórico que aqui se deu mais como acção colectiva do que como feito individual.
No romance O Bobo, escrito nos anos 40 do século XIX, num tempo de crise europeia e de dissidência interna, Herculano considera que outro teria sido o destino do condado se outro tivesse sido o desfecho de S. Mamede. “Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo, cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envoltos no temporal”.  Do campo de S. Mamede, Herculano avista já o mar dos Descobrimentos.
Para o grande historiador, cada presente escreve-se com algumas letras do alfabeto do passado. Por isso, pergunta: e agora? Restar-nos-á alguma coisa mais do que o passado para nos “revocar à energia social”? A essa pergunta, responde: é importante o passado e devemos estudá-lo e preservar o património histórico. Mas acrescenta: há outro estímulo fundamental, o da criação artística. “Que a Arte – exorta Herculano - em todas as suas formas externas represente este nobre pensamento; que o drama, o poema, o romance sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa terra.”

João Serra

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Registo


Três palavras, a primeira das quais para agradecer a presença do Senhor Presidente da Câmara e dos senhores vereadores, dos senhores membros do Conselho Geral da Fundação Cidade de Guimarães, dos representantes dos nossos parceiros, dos senhores convidados, e de todos vós.
Este é um momento que merece uma especial ênfase, na programação da CEC. Foi possível com a colaboração de Serralves e quero agradecer à presidência e direcção desta instituição prestigiada a sua disponibilidade e empenho na concretização deste projecto.
Uma palavra muito especial de agradecimento a João Fernandes, curador desta exposição, a quem aproveito também para felicitar pelas responsabilidades que vai assumir em breve e que premeia a qualidade e pertinência do seu trabalho e honra Portugal, designadamente o Portugal que não se deixa encerrar em si próprio.
A terceira palavra é para o autor de quem hoje nos orgulhamos de apresentar uma nova criação, Monsieur Christian Boltanski. Estamos muito honrados também pela sua presença neste acto formal, bem como pela proximidade com que acompanhou a montagem da sua obra.
Também quero agradecer ao Director da Escola de Belas Artes do Porto, Prof. Francisco Laranjo, a escolha desta ocasião para fazer a entrega da Medalha das Belas Artes ao artista Christian Boltanski.
Não vou falar desta criação, pois não é esse o meu encargo e muito menos a minha competência. Mas permitam-me que evoque, perante esta instalação que nos interpela tão fundamente, a obra de Raul Brandão.
Não sei se M. Boltanski conhece o Húmus, uma espécie de diário escrito em Guimarães, tendo como pano de fundo a cidade e o tempo da primeira Guerra Mundial. Os paralelismos com esta evocação são tão fortes, que eu não resisto a ler [numa tradução mais literal que literária].

Aqui não andam só os vivos - andam também os mortos. A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem com se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares. Sob um grito outro grito, sob uma pedra outra pedra. Debalde todos os dias repelimos os mortos - todos os dias os mortos se misturam à nossa vida. E não nos largam.

Eis a vila abjecta, a vila banal onde se praticam todos os dias as mesmas acções e se repetem todos os dias os mesmos gestos... Aqui só há um pensamento fundamental: fugir à morte, que é a mais viva de todas das realidades, que é talvez a única realidade. Protestar, contra as forças desabaladas, pelo sonho, em espírito ou em pedra, que se erga diante do Destino e desafie o destino.
 [Húmus, edição critica, p. 197]

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.
Eu não sou nada. Sou um minuto e a eternidade. Sou os mortos.
[p. 213]

Bem sei que isto de ser homem é duma grande responsabilidade. Tem prós e contras terríveis. Também sei que o que nos separa dos bichos não é a inteligência. A inteligência é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos a mentira como se fosse verdade. O que nos mantém neste inferno é a arquitectura artificial, é o facto de não nos vermos tal qual somos, baseados numa convenção que julgamos indestrutível. De não nos vermos a nós e de não os vermos a eles. Porque o homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos fantasmas, somos afinal só fantasmas, e o que construímos não cabe entre as quatro paredes da matéria.
[p. 171]

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Eurocomissão

Visita a Guimarães da Comissão de Educação e Cultura do Parlamento Europeu


segunda-feira, 11 de junho de 2012

António Fonseca e Os Lusíadas


Assisti à realização do projecto de António Fonseca sobre Os Lusíadas no palco do Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. a 9 de Junho passado. Constituiu para mim uma experiência singular, que me surpreendeu, cativou e emocionou. 
No plano estritamente profissional, assisti e uma performance de elevadíssima exigência, fundamentalmente credora das capacidades do actor. Dizer os 10 cantos de Os Lusíadas numa sessão contínua implica a mobilização de talentos excepcionais, longa e persistentemente aplicados, numa preparação que pôs à prova faculdades as mais diversas de António Fonseca. Desde a assimilação de um texto muito complexo, até à sedução pela palavra de um publico heterogéneo.
Os Lusíadas enquanto texto épico e portanto histórico sempre teceu uma relação especial com períodos críticos da historia nacional. Foi assim, desde logo no século XVI, no período que se seguiu a Alcácer Quibir, onde o jovem rei D. Sebastião perdeu a vida. Foi assim, particularmente no século XIX, tanto no período das invasões francesas e da revolução liberal, como, mais tarde, na crise do Ultimatum. Há quem entenda que o actual momento esquinado que Portugal atravessa é propicio a uma releitura de Camões, poeta das crises nacionais e da sua superação, pelo apelo aos valores de que seria portador o " peito ilustre lusitano".
Desse ponto de vista, a encenação do canto X idealizada por António Fonseca é particularmente interessante. O palco é "invadido" por varias dezenas de famílias que mediante, um trabalho prévio de interpretação de estrofes e versos, oferecem aos espectadores emocionados uma leitura partilhada da derradeira parte do poema.
Quero testemunhar o enorme apreço de que este trabalho de António Fonseca é merecedor, tanto pelo aspecto didáctico, ao induzir novas formas de relacionamento com o texto épico, como pelo aspecto artístico e cultural, ao expor modalidades também novas de apreensão do texto e dos seus múltiplos significados.

segunda-feira, 4 de junho de 2012


Um fim de semana especial de Guimarães 2012

À medida que a programação diversa e plural de Guimarães 2012 vai sendo apresentada, o efeito de surpresa esbate-se e a excepcionalidade instala-se numa quase normalidade. A sucessão de estreias performativas, sejam de teatro,música ou dança, de exposições, de debates, de intervenções artísticas multidisciplinares, apesar de intensa, entrou na rotina, tanto das audiências como dos mediadores.
No plano comunicacional, que se alimenta da singularidade, a operação de destacar ou hierarquizar notícias é agora mais difícil. Mas é por isso que me proponho fazer aqui, fazendo menção aos três acontecimentos que preencheram o meu fim de semana na Capital Europeia da Cultura. Um especial fim se semana como espero ser capaz de demonstrar.

Flatland Redux

Delfim Sardo reuniu quatro convidados num exercício de reflexão sobre a pintura hoje. O resultado é uma exposição absolutamente fascinante, um dos pontos altos da programação de arte e arquitectura de Guimarães  2012. Sardo é um dos críticos de arte com um percurso mais sólido, assente numa conceptualização informada sobre os caminhos da artes contemporâneas, e os artistas que escolheu apresentam trabalhos que prendem o olhar e a inteligência de modos diferentes mas igualmente sedutores.
Sardo quis vincar que a pintura não desapareceu, que há uma especificidade desta forma de trabalhar a imagem. Nenhum dos quatro autores coincide na forma como se confronta com a historia que o precede, nem sequer na técnica ou na problemática que o circunscreve, mas os cruzamentos destas quatro perspectivas são infindáveis, o que torna esta exposição obrigaria.

 O Fantasma do Novais

Margarida Gil perseguiu um Novais nos olhos e nas mãos de quem com ele privou ou de quem conheceu quem como ele privou. Os depoimentos falam pouco da personagem histórica, como se o tempo tivesse feito do homem que atravessou continentes para ser o mais cosmopolita dos vimaranenses do século XX, uma espécie de Flatland. O filme de Margarida é uma bela homenagem no feminino ao Novais de Maria Belo, Flávia Monsaraz, Maria Cabral, mas não pode ou não quis revelar o que as pregas do tempo ocultaram. Este Novais e um personagem do cinema e não dos tempos.

Androulla Vassiliou

Androulla Vassiliou chegou a Guimarães na tarde chuvosa do dia 2 de Junho, com um programa arduamente negociado com o seu gabinete, num ambiente de expectativa. Nenhum de nós conhecia pessoalmente a Comissária e o apertado protocolo parecia assinalar um certa formalidade.
A primeira reunião teve lugar no Paço dos Duques, no gabinete do Director gentilmente cedido para o efeito. Após as boas vindas do Senhor Presidente da Câmara, entrámos na matéria: eu e o Dr. Carlos Martins traçamos os objectivos, as linhas programáticas e os resultados já verificados de Guimarães 2012. Em resposta, a Senhora Comissária revelaria de imediato não só o tom em que decorreria o resto da sua visita, como as qualidades que fazem dela um dos membros mais valiosos da Comissão Europeia, pela sua experiência, pela sua arguta e fundamentada visão política, pela clareza de propósitos, pela simpatia humana que coloca nas relações institucionais, pelo conhecimento dos dossiers e pela rapidez de apreensão das situações encontradas no terreno. Deixando de lado, as palavras que tinham sido preparadas para a ocasião, Androula Vassiilou reagiu com inteligência à informação que lhe foi prestada, mostrou um amplo e prévio contacto com informação analisada, e foi calorosa nas palavras de apoio, de incentivo e de reconhecimento.

Os restantes passos da visita, que incluíram ainda a abertura da exposição Flatland, um jantar no centro histórico com comida tradicional, um concerto no Vila Flor, uma visita à ASA e ao Instituto de Design, uma breve mas emocionada presença num ensaio da Fundação Orquestra Estúdio, uma conferencia sobre políticas publicas para as artes e a cultura, declarações à imprensa, deixaram sinais claros de que a aposta de Guimarães 2012 conta com o acompanhamento e o estimulo próximos da Comissão Europeia.
Quando estamos prestes a encetar um novo ciclo de programação da CEC e a dobrar o cabo do primeiro semestre do ano 2012, estes sinais não podem deixar de merecer a devida valorização.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A inteligência não dá regra

A conduta racional da vida é impossível. A inteligência não dá regra. E então compreendi o que talvez está oculto no mito da Queda: bateu-me no olhar da alma, como um relâmpago batera no do corpo, o terrível e verdadeiro sentido daquela tentação, pela qual Adão comera da Árvore dita da Ciência.
Desde que existe inteligência, toda a vida é impossível.

Fernando Pessoa