Para muitos foi sobretudo um ponto de encontro, de cavaqueira amena, ocasionalmente mais exaltada. Tão ao jeito caldense, um espaço de troca de informação, de partilha de pontos de vista, de deixa e traz notícias, observações pessoais, averiguação de rumores. Onde se planearam acções de grupos mais ou menos alargados, pequenas conspirações, ou se sonharam grandes projectos de mudança, de estudantes e professores, de comerciantes ou artistas.
Ali se redigiram comunicados e se divulgaram actividades, ali se deixaram e se procuraram recados e encomendas. Várias associações, formais ou informais, ali tiveram o seu embrião, o seu local de reunião, a sua sede. O “Património Histórico”, por exemplo, nasceu e cresceu na Loja 107.
Em 1999, a Isabel Castanheira fez da 107 a Ca[u]sa de Timor, ou seja o motor das mobilizações excepcionais que envolveram os caldenses na defesa da independência de Timor Leste e na condenação da ocupação indonésia. A 107 consolidou assim a justa percepção de que esta livraria era de facto um prolongamento do espaço público da cidade.
A nata dos escritores portugueses veio à cidade pela mão da Isabel Castanheira, explicou as suas obras, dedicou-as e escutou reacções aos seus textos, na 107 ou nas suas “extensões”: o café Populus, o Paxá e o Centro Cultural e de Congressos. Quase todos os autores caldenses das últimas três décadas por ali passaram, para lançar e apresentar os seus escritos e, nalguns casos, para mostrar os seus esboços, desenhos ou fotografias.
As tertúlias animadas pela 107 não se limitaram à promoção de livros. Proporcionaram a públicos diversificados em origem e idade conhecimento e debate de qualidade, contacto com ideias novas, implicação intelectual. As celebrações do dia da poesia, por exemplo, com as suas actividades de rua e as suas sessões abertas de leitura, foram acontecimentos culturais vivos e participados.
A informática franqueou cedo as portas da 107 que, por esta via, ofereceu um novo “serviço” aos seus visitantes: uma espécie de cibercentro com busca assistida. Como a Isabel se tornou uma coleccionadora pertinaz de obras referentes às Caldas e uma estudiosa obsessiva de Rafael Bordalo Pinheiro, a Livraria dotou-se de um “corredor” biblioteca e de uma “sala” centro de investigação. Os “caldólogos” profissionais ou amadores perceberam cedo que a 107 era um local de frequência incontornável e os funcionários dos serviços públicos de informação local incorporaram no seu roteiro a 107. “Vá à Livraria, lá saberão dar-lhe indicações mais precisas” – aconselham aos que questionam aspectos da história local. A loja 107 abriu desta forma uma outra “sala” de informações turísticas, com “escada de acesso” ao arquivo municipal.
Gente de todas as idades ali entrou para procurar uma pista
para um livro, uma sugestão para uma oferta, uma leitura surpreendente para
partilhar – um gesto de amor, de amizade, de respeito, de consideração, uma
evocação grata, um agradecimento singular mediado por um livro. Miúdos, crianças contactaram ali com os primeiros livros, de histórias infantis ou de banda desenhada, sempre sob conselho e vigilância da Isabel.
Além de livros, no espaço estreito de um corredor livreiro apinhado, na loja 107 havia quadros, fotografias, bonecos vários e gatos. Gatos literários, como são todos, com nomes literários. Gatos de livros, geralmente gordos, salvos da condenação ao abandono, pachorrentos, dorminhocos e proprietários dos recantos da casa. A livraria 107 tinha entre os seus amigos fiéis os amigos fiéis de gatos, os quais davam pelos nomes improváveis de “Gil Vicente” ou “Florbela Espanca”. O blogue da Isabel, um dos mais antigos e populares blogues caldenses, "Cavacos das Caldas", ilustra bem a devoção que se pratica na loja relativamente aos “dóceis animais”, com uma abundante iconografia e alusões literárias aos personagens felinos.Com a pedonalização da zona urbana onde está implantada a 107, a livraria deu mais visibilidade à sua dinâmica exterior, pública, participando na ocupação/animação da rua sobretudo nas manhãs de Sábado.
A personalidade voluntariosa e desassombrada da Isabel dominou evidentemente a Loja 107, a que deu alma e coração. À sua volta vimos crescer, em diligência, solicitude e simpatia, a Ivone e a Catarina.
Na loja 107, a venda de livros era evidentemente o objecto empresarial. Mas não o verdadeiro negócio. Muitas vezes me pareceu assistir até a uma espécie de inversão de valores: a livraria é que era o promotor e o mecenas da cultura e não o parceiro estratégico de uma politica cultural. O verdadeiro negócio de Livraria Loja 107 foi a literatura, o conhecimento, a criação cultural. É por isso que não faz sentido que encerre as suas portas e que os caldenses, perdulários, assistam a este fim sem revolta nem alternativa.
3 comentários:
Li e chorei.
Isabel da 107
Pois é... Isabel, João, são tempos de emoções à flor da pele.
Não há causas para as coisas. Acontecem e nem sabemos como e porquê. Quando damos por ela, já está!
Mas é gratificante, no meio de toda esta perplexidade haver quem faça um balanço tão verdadeiro do que foi, é, tem sido a Loja 107 nas Caldas e para as Caldas.
Sobra esta irreparável sensação de perda.
- Isabel X -
partilho todas as tuas palavras...as lágrimas da Isabel, também
Margarida Araújo
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