Fernando ficou pensativo a um canto do salão, meditando no appellido Briteiros. Sabia de cór os nomes dos signatarios do accordão que enforcou os academicos. Não lhe era extranho o feio aspecto d'aquelle homem. Devia ser elle: ouvira em Lisboa dizer que o mais façanhudo dos algozes vivia em Florença, com grande luxo, e segura posse de seus bens na patria. Odiou-o; não poude mais fital-o em rosto. Pensava em sair da sala, quando Jeronymo Bonaparte lhe disse:
—Venha ver as suas lindas patricias, que desejam conhecer o portuguez... Mas tome tento em não argumentar com o pae. O senhor de Briteiros é contumaz inimigo do povo e da liberdade. Cá entre os meus hospedes francezes é conhecido por Luiz XI. O homem é um apologista das gaiolas de ferro para uso das avesinhas que cantam a liberdade. Detesta Lamartine, que escreveu contra a pena de morte, e defende que a arvore da liberdade deve ser cortada, torada, serrada e afeiçoada á maneira de forcas. Tem de bom que salga as suas theses com muita inepcia: gente emigrada não póde desprezar estes perrexis do riso, por isso o senhor de Briteiros é muito procurado. Agora vamos ver que duas flores saíram d'aquelle bravio matagal.
Approximou-se o principe de Eugenia e Paulina.
—Aqui está o seu patricio, minhas senhoras—disse elle, indicando a Fernando uma cadeira—conversem; espaireçam saudades da sua terra.
Retirou-se o apresentante, deixando o filho de Francisco Lourenço penosamente enleiado.
—Está ha muito em Florença?—perguntou Eugenia.
—Ha dois mezes, minha senhora.
—Lisboa é mais linda, não é?
—Lisboa é a patria; mas Florença é a perola do mundo—disse Fernando.—Não vi na Grecia vestigios de lá ter havido uma Florença; e, com tudo, a Grecia era a colmeia dos mais doces favos do mundo antigo. Aqui me parece que vejo resurgidas as delicias da Roma imperial, os jardins de Lucullo, os marmores jorrando espadanas de crystal, as thermas de Antonio, os...
Reteve-se Fernando. Reparou que o estavam escutando duas meninas, que, no ar do semblante, pareciam escutar idioma desconhecido. Que sabiam ellas de Lucullo e Antonio, as florinhas dos anjos, que da vida e mundo apenas conheciam o espaço perfumado de seus virginaes aromas? A ellas que se lhes dava de Florença, onde viviam tristes, com saudades do seu jardim de Lisboa, onde tinham cada uma seu canteiro, e em cada canteiro as plantas do seu amor? Seis annos havia que tinham deixado a patria, e ainda se diziam uma á outra: «Ainda veremos as nossas casinhas de murta? Já arrancariam as trepadeiras que se entrançavam em redor das janellas do nosso quarto?» O que ellas queriam era ouvir falar de Portugal, de Lisboa, do seu palacio, e talvez das suas flôres. Conheceria Fernando as flôres que ellas tinham?
—Tem muitas saudades de Portugal?—disse Fernando.
—Sempre...—respondeu Paulina.
—E quem priva seu pae de voltar á patria?
—Elle não quer!—disse Eugenia—Tanto lhe temos pedido! Responde nos sempre que só volta a Portugal com o sr. D. Miguel... Quando irá o sr. D. Miguel, sabe?
—Não sei, minhas senhoras... Parece-me que o sr. D. Miguel não pensa em lá voltar...
—Não?!—atalhou Paulina—E o papá a dizer que sim!... Então nunca lá tornaremos!
—Tornam, tornam. A final o pae de vossas excellencias vae sem a companhia do sr. D. Miguel, e supponho até que elle póde viver tranquillo sem a protecção do principe. As pessoas, que serviram o partido do sr. D. Miguel, teem toda a segurança em Portugal; d'isto deve estar sobejamente informado o pae de vossa excellencia.
—Diga-lh'o, sim?—tornou Eugenia.
—Não me atrevo a aconselhal-o; porém, se o sr. Bartholo de Briteiros quizesse ouvir o meu parecer, dir-lhe-ia que o partido liberal só persegue os seus proprios amigos.
As meninas não entenderam a doble intenção d'estas ultimas palavras. Fernando, em virtude do nenhum uso que tinha de trato com senhoras, compunha sempre as suas phrases em estylo sentencioso, como se as estivesse palestrando com philosophos ou politicos.
Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.
sábado, 11 de junho de 2011
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