As cidades de que se faz Guimarães 2012
Cidade antiga, com um passado que a inscreve como pólo catalisador
de um território que adquiriu identidade histórica nos períodos proto-medieval
e medieval, Guimarães tem sido , no período contemporâneo, protagonista de
processos significativos de modernização económica e de projecção cultural.
A arqueologia assinalou, no espaço geográfico de Guimarães,
testemunhos eloquentes, como os presentes na Citânia de Briteiros, de uma
cultura comum ao Noroeste peninsular na Idade do Ferro. A história reconheceu,
tanto ao cenário como aos actores vimaranenses, um nexo essencial com os
acontecimentos que estão na origem da autonomia e independência de Portugal.
As dinâmicas económicas e sociais, somadas às político-militares,
religiosas e simbólicas, traduziram-se, nos tempos pós-medievais, em ampliação
da área de implantação e de influência do antigo burgo. Em meados do século
XIX, Guimarães viu ser-lhe reconhecido formalmente o estatuto de cidade,
beneficiando paralelamente da melhoria dos sistemas de circulação e transportes
e dos equipamentos de formação escolar e profissional. Neste contexto, a nova
cidade adquiriu uma feição industrial, que marcaria profundamente a sua
história nos últimos 150 anos. Dos couros ao têxtil, essa é uma história
pautada por transformações da paisagem e da tecnologia, por alterações na
distribuição da população, por crises e superações, por mudanças profundas na
estrutura urbana e no território circundante que encabeça.
Este processo foi acompanhado – e esse será porventura um dos
traços singulares da história da cidade de Guimarães – por uma reflexão
aprofundada por parte das elites intelectuais e politicas acerca da história e
do destino do seu próprio espaço cultural identitário. É assim que um lote
brilhante de vimaranenses percorre caminhos pioneiros nos estudos históricos e
humanísticos, na criação literária, científica e artística que marcou várias
gerações da cultura portuguesa desde finais do século XIX. Martins Sarmento,
Alberto Sampaio, Raul Brandão, Abel Salazar, Joaquim Novais Teixeira e Fernando
Távora e são alguns desses nomes.
Enquanto, na transição do século XIX para o século XX, em Guimarães
se assiste a uma profícua investigação e a um riquíssimo debate sobre as marcas
identitárias do território e o seu destino regional, um século mais tarde a
cidade é alvo de um notável investimento na revitalização do seu centro
histórico e na afirmação da componente cultural como um factor decisivo de
capacitação das pessoas e do espaço envolvente. Trata-se de uma resposta
consolidada ao longo de várias décadas e em diversos planos. No plano
urbanístico a prioridade foi dirigida para a revitalização do tecido urbano nas
áreas habitadas do centro, regeneração do espaço público, recuperação do
património histórico edificado. No plano cultural, a atenção foi voltada para a
renovação dos equipamentos culturais e para a formação de uma sólida estrutura
de programação contemporânea de alto nível de exigência.
A política de reabilitação do centro histórico, assente em
princípios de salvaguarda da morfologia medieval e de recuperação e manutenção
de técnicas construtivas tradicionais ligadas à arquitectura “chã”
predominante, foi reconhecida nacional e internacionalmente, culminando com a
classificação do centro histórico de Guimarães como Património da Humanidade
pela UNESCO, em 2001.
A cidade de Guimarães beneficiou de um ambiente de sociabilidade e
criatividade associado às artes e à cultura, quer na sua dimensão mais popular,
relacionada com valores, tradições e costumes ancestrais, que atribuem às suas
festividades (as Gualterianas e as Nicolinas, para referir as mais conhecidas),
à gastronomia, às artes e ofícios tradicionais (o bordado, o linho, o ferro
forjado, a olaria, etc.) um lugar central na vida da cidade, quer numa dimensão
mais erudita, destacando-se, a este propósito, o Círculo de Arte e Recreio, a
Academia de Música Valentim Moreira de Sá, a Associação Cultural Convívio ou o
Cineclube de Guimarães, entre outros. A Fundação Martins Sarmento, o Museu de
Alberto Sampaio, o Paço dos Duques têm contribuído, ao longo deste período,
para uma estruturação e qualificação das dinâmicas culturais da cidade, assumindo
um papel catalisador de outras instituições associativas de base voluntária.
A autarquia desempenhou um papel decisivo. Nos últimos anos a sua
intervenção abrangeu tanto a dotação em equipamentos da cidade e do concelho,
com novas valências destinadas à promoção e difusão das artes e da cultura (além
da Biblioteca Municipal Raul Brandão, Centro Cultural Vila Flor, Pavilhão
Multiusos, Complexo Multifuncional de Couros, Arquivo Municipal Alfredo
Pimenta, para falar apenas da cidade), como a vertente do apoio à sustentação
de estruturas de criação e produção artística, como o caso da régie cooperativa
“A Oficina”. Graças a esta, responsável pela programação e produção no Centro
Cultural Vila Flor, Guimarães consolidou uma posição de referência em diversas
áreas artísticas, que lhe granjearam notoriedade regional, nacional e até
internacional. Em parceria com associações locais, a autarquia promoveu, por
exemplo festivais como: Guimarães
Jazz (desde 1992); Festivais Gil Vicente (intermitentemente, desde os anos 60
e, anualmente, a partir da década de 90), orientado para a divulgação da
produção teatral contemporânea de âmbito nacional; Encontros Internacionais de
Música (uma evolução dos Encontros da Primavera, realizados desde a década de
80), oferecendo a oportunidade a jovens músicos de aperfeiçoamento, de contacto
com artistas de renome internacional e de apresentação em público.
Este movimento segue em paralelo com um complexo processo de
mudança no seu tecido económico e social. A modernização tecnológica das
últimas décadas revelou não apenas a pujança de um sector exportador,
nomeadamente no têxtil, mas sobretudo a capacidade de inscrever no território,
com uma visão integrada no processo de mundialização, o espírito empreendedor e
a vontade de afirmação que é um dos traços identificadores de Guimarães e dos
vimaranenses.
A presença da Universidade, com o ensino das diversas disciplinas
das engenharias e da arquitectura polarizadas em Guimarães, ajudou a
reconfigurar esta tendência, somando informação e conhecimento à propensão
inovadora revelada pelo sector industrial e despertando novas áreas de
investigação e de criação de produtos.
A crise actual afecta, tanto na componente financeira, como na de
retracção dos mercados, a indústria da região, mas não as características das
apostas e do élan empreendedor que fez o sucesso vimaranense no passado. Se os
mercados hoje apostam em encomendas de menor dimensão e em produtos de
conceito, incorporando valor tanto pelo lado da tecnologia como do design,
voltamos a contar com as empresas de Guimarães, com os empreendedores de
Guimarães.
A Capital Europeia da Cultura representa para esta cidade e este
território uma oportunidade rara: fazer coincidir os processos culturais,
urbanos e económicos num mesmo impulso regenerador e inovador. Mais do que a
inovação tecnológica, o que este momento clama é pela tradução em inovação na
gestão das empresas, no social, no político. É este o grande desafio de
Guimarães 2012, ser um meeting point:
da inovação e do património, da
identidade e da transformação, do local e do global, da criação e da
aprendizagem.
Uma coincidência não é uma amálgama. 2012 permitirá justapor, sem
ocultar, as várias cidades de que se faz Guimarães.
A cidade histórica e patrimonial, na qual se conjugam os vestígios
do passado e as conceitos de patrimonialização das sucessivas épocas, desde as
perspectivas da cidade histórica como puro cenário, à cidade histórica como
memoria alusiva e interactiva. A cidade que fez do seu centro histórico em vez
de um museu um espaço público vivo, celebratório, convivial, surpreendente. A
cidade onde se investiga, se reflecte, se debate o papel das cidades e dos
cidadãos e se ensaiam novos modelos de projecção do património comum.
A cidade de artes, onde se combinam espaços tradicionais de
intervenção artística com novos espaços de criação e exibição artística,
convencionais e museológicos, uns,
reconvertidos, efémeros, ou mesmo improvisados outros. Cidade que
convida à reflexão sobre públicos e audiências, sobre colecções e curadoria,
sobre criação e espaço público, sobre contextos e novas linguagens. Cidade que
é palco e residência, que se oferece a criadores de todo o mundo como tema e
como tela, como motivo e como destino. Cidade dos bombos nicolinos e dos La
Fura Dels Baús, de José de Guimarães, de Boltanski e Pistoletto. Cidade onde se
interpela a memória e jovens talentos da realização cinematográfica se cruzam
com Godard, Greenaway, Oliveira ou Aki Kaurismaki.
Cidade de música, onde a musica invade não apenas as salas de
concerto, mas também as praças e as casas, os grandes espaços públicos e os
pequenos salões, os jardins, as igrejas e os hospitais. Música histórica e de
solistas clássicos, música de modernos, grupos actuais, cantores populares.
Música composta e tocada por músicos jovens, profissionais, de toda a Europa, e
por músicos não profissionais, de diferentes gerações.
Cidade da indústria, da tecnologia e do design, onde a
Universidade faz parte do circulo virtuoso da criação de valor, onde cutelaria,
moda, calçado, artesanato procuram a inovação, o mercado exigente e o emprego
qualificado.
Cidade do futuro, onde se desenvolvem novas agendas, ou seja novos
modos de conceber a agenda da competitividade e do desenvolvimento. A agenda da
regeneração urbana que enquadra a requalificação física do espaço urbano num
conceito de cidade como paisagem criativa. A agenda da regeneração social que
sublinha o papel das organizações e desafia a participação dos cidadãos, que
estimula o talento e acolhe a tolerância. A agenda da regeneração económica que
aposta no renascimento das cidades, no turismo cultural, na economia criativa.
A agenda da cidade educativa que reforça competências formais e informais,
tanto na escola como em sectores desmunidos culturalmente, tanto nos níveis
básico como superiores do ensino.
Estas cidades são uma cidade concreta, com os seu espírito de
lugar e o seu património comum, Guimarães. Mas são também todas as cidades,
construtores da vida colectiva e da cidadania, da Europa como destino generoso
e culturalmente diverso.
Uma Capital Europeia
da Cultura, como a de Guimarães 2012, não vale pelo seu resultado imediato, mas
pelo processo em que se inscreve. Esse processo tem um antes – sem o qual o
evento não passaria de mais um festival – e terá um depois. É nesse
prolongamento (para lá de 2012) que reside o sentido mais forte do projecto.
João Serra
1 comentário:
Partindo do local, do concreto, do conhecimento da identidade e das potencialidades do lugar, em Guimarães nasce e cresce um projeto que conjuga memória e futuro. Agora. No presente.
Muito interessante!
- Isabel X -
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