quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Registo


As cidades de que se faz Guimarães 2012

Cidade antiga, com um passado que a inscreve como pólo catalisador de um território que adquiriu identidade histórica nos períodos proto-medieval e medieval, Guimarães tem sido , no período contemporâneo, protagonista de processos significativos de modernização económica e de projecção cultural.
A arqueologia assinalou, no espaço geográfico de Guimarães, testemunhos eloquentes, como os presentes na Citânia de Briteiros, de uma cultura comum ao Noroeste peninsular na Idade do Ferro. A história reconheceu, tanto ao cenário como aos actores vimaranenses, um nexo essencial com os acontecimentos que estão na origem da autonomia e independência de Portugal.
As dinâmicas económicas e sociais, somadas às político-militares, religiosas e simbólicas, traduziram-se, nos tempos pós-medievais, em ampliação da área de implantação e de influência do antigo burgo. Em meados do século XIX, Guimarães viu ser-lhe reconhecido formalmente o estatuto de cidade, beneficiando paralelamente da melhoria dos sistemas de circulação e transportes e dos equipamentos de formação escolar e profissional. Neste contexto, a nova cidade adquiriu uma feição industrial, que marcaria profundamente a sua história nos últimos 150 anos. Dos couros ao têxtil, essa é uma história pautada por transformações da paisagem e da tecnologia, por alterações na distribuição da população, por crises e superações, por mudanças profundas na estrutura urbana e no território circundante que encabeça.
Este processo foi acompanhado – e esse será porventura um dos traços singulares da história da cidade de Guimarães – por uma reflexão aprofundada por parte das elites intelectuais e politicas acerca da história e do destino do seu próprio espaço cultural identitário. É assim que um lote brilhante de vimaranenses percorre caminhos pioneiros nos estudos históricos e humanísticos, na criação literária, científica e artística que marcou várias gerações da cultura portuguesa desde finais do século XIX. Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Raul Brandão, Abel Salazar, Joaquim Novais Teixeira e Fernando Távora e são alguns desses nomes.
Enquanto, na transição do século XIX para o século XX, em Guimarães se assiste a uma profícua investigação e a um riquíssimo debate sobre as marcas identitárias do território e o seu destino regional, um século mais tarde a cidade é alvo de um notável investimento na revitalização do seu centro histórico e na afirmação da componente cultural como um factor decisivo de capacitação das pessoas e do espaço envolvente. Trata-se de uma resposta consolidada ao longo de várias décadas e em diversos planos. No plano urbanístico a prioridade foi dirigida para a revitalização do tecido urbano nas áreas habitadas do centro, regeneração do espaço público, recuperação do património histórico edificado. No plano cultural, a atenção foi voltada para a renovação dos equipamentos culturais e para a formação de uma sólida estrutura de programação contemporânea de alto nível de exigência.
A política de reabilitação do centro histórico, assente em princípios de salvaguarda da morfologia medieval e de recuperação e manutenção de técnicas construtivas tradicionais ligadas à arquitectura “chã” predominante, foi reconhecida nacional e internacionalmente, culminando com a classificação do centro histórico de Guimarães como Património da Humanidade pela UNESCO, em 2001.
A cidade de Guimarães beneficiou de um ambiente de sociabilidade e criatividade associado às artes e à cultura, quer na sua dimensão mais popular, relacionada com valores, tradições e costumes ancestrais, que atribuem às suas festividades (as Gualterianas e as Nicolinas, para referir as mais conhecidas), à gastronomia, às artes e ofícios tradicionais (o bordado, o linho, o ferro forjado, a olaria, etc.) um lugar central na vida da cidade, quer numa dimensão mais erudita, destacando-se, a este propósito, o Círculo de Arte e Recreio, a Academia de Música Valentim Moreira de Sá, a Associação Cultural Convívio ou o Cineclube de Guimarães, entre outros. A Fundação Martins Sarmento, o Museu de Alberto Sampaio, o Paço dos Duques têm contribuído, ao longo deste período, para uma estruturação e qualificação das dinâmicas culturais da cidade, assumindo um papel catalisador de outras instituições associativas de base voluntária.
A autarquia desempenhou um papel decisivo. Nos últimos anos a sua intervenção abrangeu tanto a dotação em equipamentos da cidade e do concelho, com novas valências destinadas à promoção e difusão das artes e da cultura (além da Biblioteca Municipal Raul Brandão, Centro Cultural Vila Flor, Pavilhão Multiusos, Complexo Multifuncional de Couros, Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, para falar apenas da cidade), como a vertente do apoio à sustentação de estruturas de criação e produção artística, como o caso da régie cooperativa “A Oficina”. Graças a esta, responsável pela programação e produção no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães consolidou uma posição de referência em diversas áreas artísticas, que lhe granjearam notoriedade regional, nacional e até internacional. Em parceria com associações locais, a autarquia promoveu, por exemplo festivais como:  Guimarães Jazz (desde 1992); Festivais Gil Vicente (intermitentemente, desde os anos 60 e, anualmente, a partir da década de 90), orientado para a divulgação da produção teatral contemporânea de âmbito nacional; Encontros Internacionais de Música (uma evolução dos Encontros da Primavera, realizados desde a década de 80), oferecendo a oportunidade a jovens músicos de aperfeiçoamento, de contacto com artistas de renome internacional e de apresentação em público.
Este movimento segue em paralelo com um complexo processo de mudança no seu tecido económico e social. A modernização tecnológica das últimas décadas revelou não apenas a pujança de um sector exportador, nomeadamente no têxtil, mas sobretudo a capacidade de inscrever no território, com uma visão integrada no processo de mundialização, o espírito empreendedor e a vontade de afirmação que é um dos traços identificadores de Guimarães e dos vimaranenses.
A presença da Universidade, com o ensino das diversas disciplinas das engenharias e da arquitectura polarizadas em Guimarães, ajudou a reconfigurar esta tendência, somando informação e conhecimento à propensão inovadora revelada pelo sector industrial e despertando novas áreas de investigação e de criação de produtos.
A crise actual afecta, tanto na componente financeira, como na de retracção dos mercados, a indústria da região, mas não as características das apostas e do élan empreendedor que fez o sucesso vimaranense no passado. Se os mercados hoje apostam em encomendas de menor dimensão e em produtos de conceito, incorporando valor tanto pelo lado da tecnologia como do design, voltamos a contar com as empresas de Guimarães, com os empreendedores de Guimarães.
A Capital Europeia da Cultura representa para esta cidade e este território uma oportunidade rara: fazer coincidir os processos culturais, urbanos e económicos num mesmo impulso regenerador e inovador. Mais do que a inovação tecnológica, o que este momento clama é pela tradução em inovação na gestão das empresas, no social, no político. É este o grande desafio de Guimarães 2012, ser um meeting point:  da inovação e do património, da identidade e da transformação, do local e do global, da criação e da aprendizagem.
Uma coincidência não é uma amálgama. 2012 permitirá justapor, sem ocultar, as várias cidades de que se faz Guimarães.
A cidade histórica e patrimonial, na qual se conjugam os vestígios do passado e as conceitos de patrimonialização das sucessivas épocas, desde as perspectivas da cidade histórica como puro cenário, à cidade histórica como memoria alusiva e interactiva. A cidade que fez do seu centro histórico em vez de um museu um espaço público vivo, celebratório, convivial, surpreendente. A cidade onde se investiga, se reflecte, se debate o papel das cidades e dos cidadãos e se ensaiam novos modelos de projecção do património comum.
A cidade de artes, onde se combinam espaços tradicionais de intervenção artística com novos espaços de criação e exibição artística, convencionais e museológicos, uns,  reconvertidos, efémeros, ou mesmo improvisados outros. Cidade que convida à reflexão sobre públicos e audiências, sobre colecções e curadoria, sobre criação e espaço público, sobre contextos e novas linguagens. Cidade que é palco e residência, que se oferece a criadores de todo o mundo como tema e como tela, como motivo e como destino. Cidade dos bombos nicolinos e dos La Fura Dels Baús, de José de Guimarães, de Boltanski e Pistoletto. Cidade onde se interpela a memória e jovens talentos da realização cinematográfica se cruzam com Godard, Greenaway, Oliveira ou Aki Kaurismaki.
Cidade de música, onde a musica invade não apenas as salas de concerto, mas também as praças e as casas, os grandes espaços públicos e os pequenos salões, os jardins, as igrejas e os hospitais. Música histórica e de solistas clássicos, música de modernos, grupos actuais, cantores populares. Música composta e tocada por músicos jovens, profissionais, de toda a Europa, e por músicos não profissionais, de diferentes gerações.
Cidade da indústria, da tecnologia e do design, onde a Universidade faz parte do circulo virtuoso da criação de valor, onde cutelaria, moda, calçado, artesanato procuram a inovação, o mercado exigente e o emprego qualificado.
Cidade do futuro, onde se desenvolvem novas agendas, ou seja novos modos de conceber a agenda da competitividade e do desenvolvimento. A agenda da regeneração urbana que enquadra a requalificação física do espaço urbano num conceito de cidade como paisagem criativa. A agenda da regeneração social que sublinha o papel das organizações e desafia a participação dos cidadãos, que estimula o talento e acolhe a tolerância. A agenda da regeneração económica que aposta no renascimento das cidades, no turismo cultural, na economia criativa. A agenda da cidade educativa que reforça competências formais e informais, tanto na escola como em sectores desmunidos culturalmente, tanto nos níveis básico como superiores do ensino.
Estas cidades são uma cidade concreta, com os seu espírito de lugar e o seu património comum, Guimarães. Mas são também todas as cidades, construtores da vida colectiva e da cidadania, da Europa como destino generoso e culturalmente diverso.
 Uma Capital Europeia da Cultura, como a de Guimarães 2012, não vale pelo seu resultado imediato, mas pelo processo em que se inscreve. Esse processo tem um antes – sem o qual o evento não passaria de mais um festival – e terá um depois. É nesse prolongamento (para lá de 2012) que reside o sentido mais forte do projecto.

João Serra

1 comentário:

Isabel X disse...

Partindo do local, do concreto, do conhecimento da identidade e das potencialidades do lugar, em Guimarães nasce e cresce um projeto que conjuga memória e futuro. Agora. No presente.
Muito interessante!
- Isabel X -