domingo, 20 de janeiro de 2013

Aviso

Com este blogue suspenso, o autor abriu um outro, que de momento funciona a título experimental.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Uma alma nova

A única maneira de teres sensações novas é construires-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires-te de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.

Mudar de alma. Como? Descobre-o tu.
Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
 P. - 442.



domingo, 13 de janeiro de 2013

De Esposende






De Esposende

Hoje




Face to face (5)


Face to face


Ao terceiro dia da quarentena, abriu-se uma janela. Controladamente, como não podia deixar de ser, mas ainda assim arriscada. Eu conto.
Cumpri um intenso programa nos dias anteriores. Dei nota aqui das visitas de Juliette Binoche (em viagem de balão vermelho), Elisabeth Taylor (encantando Paris do pós-Guerera) e Henri Fonda (incumbido por Ford de encarnar o jovem Lincoln). Não referi, a visita absorvente de Visconti, que me mostrou com Mastroianni e Maria Schell as Noite Brancas nos canais de Livorno. Esta história dostoievskiana perturbou o meu optimismo mal informado em coisas de amor. Decidi por isso que Luchino teria de se explicar melhor. O que me trouxe em seguida foi simplemente arrasador: Sentimento. Desta vez em Veneza e região, no período das ascensão de Garibaldi, o exemplo que me trouxe sobre a prevalência trágica das inclinações amorosas sobre a razão politica, deixou-me perplexo e duvidoso. Pois bem, ontem ao princípio da noite, convoquei o mestre da minha geração, Truffaut, para uma conferencia sobre o amor e as mulheres. Trazia com ele seis DVD’s, mas de facto só vimos o primeiro, Jules e Jim. O resultado foi devastador. Jeanne Moreau, a minha sempre amada Jeanne Moreau, que ainda há pouco tricotava, no Gebo e a Sombra, o embevecido Luís Miguel Cintra, veio dizer e fazer coisas terríveis acerca do tema, trucidando almas e corações e até corpos, como se viu naquela abominável mas absolutamente previsível cena do carro que atira para o rio. Afinal o amor não muda os seres, não muda o mundo, não constrói? 
Os meus amigos poetas diriam que foi sob o signo da inquietude que recebi a manha. De uma forma mais elementar, direi que acordei sufocado: de tanto tempo encerrado em casa, de tantas visitas até então sempre adiadas. A chuva desaconselhava que saísse, pois corria o risco de ter de ficar dentro do carro. Mas arrisquei e segui até Esposende.
Que rumo tão surpreendente, exclamarão os leitores incautos que tiverem resistido à prosa anterior. Mas existiam e existem motivos para a escolha de Esposende, um local assinalado a azul no meu roteiro sentimental. Que procurava encontrar aí? Pois em primeiro lugar, algum sol, uma temperatura amena, que me permitisse calcorrear as praias e as calçadas, observar o movimento das correntes e das ondas, sentir o pulsar dos barcos e dos portos, apanhar calhaus e arreliar-me com a areia nos sapatos.
Pois foi o que encontrei, exactamente. Coisas sensíveis e ambientes, memorias e desejos de futuro. Uma janela sobre o presente. Saber que o presente prolonga o passado, mas é distinto e autónomo. E que há decisões que somos nós quem as toma. Que podemos e devemos surpreender e ser surpreendidos. Picasso dizia que, enquanto a inspiração vem e não vem, é melhor estar a trabalhar. Isto vale tanto para a arte, como para o amor.

De Esposende

De Esposende guardo a memória viva de dias passados no Hotel Suave Mar a preparar uma cronologia sobre a obra de Ferreira da Silva. Dias felizes e intensos, tempo de chuva e ventos fortes, já lá vai mais de uma dezena de anos.

Uma fotografia, obtida com a minha primeira máquina digital, que fazia imagens de 60 Kbytes, trazida de Macau pelo Pedro Reis.

sábado, 12 de janeiro de 2013

À janela de Gérard Castello Lopes







Esta absolutamente extraordinária sequência pode (deve) ser vista com outra qualidade de imagem em Gérard Castello Lopes, 1956-2006. Aparições. Paris, BES e FCG, 2011.

As fotografias foram tiradas em Sesimbra, em 1956

Face to face (4)

Neste dia, dirigi-me a face nestes termos:


Face to face

Cumpro o meu segundo dia de quarentena. Da agenda de penalizações daí resultantes a mais grave, no dia de hoje, foi a ausencia à festa de aniversário do meu neto.
Pedi emprestada à minha fotógrafa preferida uma imagem da Foz esta manhã e nela introduzi o peixe colorido que o Joãozinho me ofereceu pelo Natal.
Continuo a ser muito visitado: pelo Lino Teixeira, que me faz a reportagem em directo de Marselha 2013, onde Durão Barroso se referiu a Guimarães 2012; de madrugada, apareceu o Henri Fonda contando os passos sóbrios e solidários do jovem Lincoln; à tarde, surgiu a Elisabeth Taylor que encheu Paris de alegria, irreverencia e ... amor, claro.
Paris não sai de cena.

Nota
Esta imaginativa montagem de fotos, que contou com a complacência da fotografa e, em geral, dos meus amigos do face que me perdoaram generosamente o atentado, obteve do destinatário o seguinte comentário (enviado pela mãe):
Muito obrigado por teres posto o peixe que eu te dei e adoro-te avô João! (assina Joaozinho)!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Face to face (3)

No dia 11, refeito da surpresa, mas não da devastadora acção dos meus inimigos ocultos - oh! afasta de mim este espelho - a minha confissão ao face foi mais loquaz.


Face to face

Os impérios, quando batem em retirada, semeiam muitas vezes mais destruição e horror do que no momento da entrada.
Mas em breve, espero, será tempo de voltar a semear os campos e reconstruir as cidades.
Numa pausa da refrega, fui até ao mar. Aquela luz ajuda a ver mais claro. Aquela profundidade, a ver mais longe. O balão vermelho sobrevoava o molhe da Foz batido pelas ondas fortes da maré cheia.
Ao fim da tarde, marquei encontro com Gérard Castelo Lopes, e as suas "Aparições -1956-2006". Ainda não parei de folhear esta espantosa colecção de imagens.
Gérard Castello Lopes, Bruxelas, 1957

E para o mural da Dalila Garcia, minha fotógrafa preferida, enviei em simultâneo esta outra imagem de uma travessa menina loura (como ela). Acredito que o gesto tenha sido apreciado.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Face to face (2)

Ao longo do dia 9 foram-se acentuando os sinais de mau-estar geral, que já nem os analgésicos conseguiam ocultar, e bem assim uma erupções cutâneas que alguém rapidamente identificou como o resultado da ingestão ao almoço do dia anterior de 3 famigeradas ameijoas provindas dos mares do Oriente.
No mesmo sentido foi a opinião do meu competente cardiologista (que certamente partilha a generalizada desconfiança dos meios hospitalares relativamente a bivalves de origem indiscriminada). De modo que só no dia 10, pela manhã, perante os sinais de uma alarmante invasão de uma brigada anti-autoimunitários, que deixara pelo tronco, pescoço, cara e braços o resultado vexatório de uma inclemente vaga de pequenas ulceras, tomei a medida que gravidade da situação impunha: para o Hospital de Guimarães, rapidamente e em força.
O diagnostico foi imediato, mal cheguei a metro e meio do dermatologista chefe: vá para casa 7 dias, tratar dessa varicela.

Quando, enfim, a meio da tarde, recobrei do choque e da perturbação, pedi ajuda a Fernando Pessoa (è nestas alturas, de quase desespero, que temos que recorrer ao mais alto, e responde assim ao amigo face.


Viro esquinas de ideias [Fernando Pessoa, Livro do Desassossego de Bernardo Soares].

À leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trémula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.
Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as actuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas."


Ao fim desta tarde entrecortada de sonolências, vi o filme "Voyage d'un ballon rouge".

O face to face do dia rezou assim:


A brigada dos anti-autoinunitários ainda não desistiu.
Juliette Binoche, loura, veio prestar-me ajuda.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Face to face (1)

A fim de cativar os seus adeptos, aliás em número crescente e imparável, o facebook decidiu colocar no "mural" (curiosa designação!) de cada um dos inscritos, uma pergunta convidativa à confidência. Do género: Que se passa, João? O que é que está a acontecer, João? Perguntas imaginativas, como está bem de ver.
Educadamente tenho tentado, desde que me apercebi da inovação, dar resposta às perguntas. Intitulei a rubrica de "face to face" e dispenso-me de explicar porquê.

No dia de hoje, 9, escrevi o seguinte texto.

Face to face

Hoje andei às voltas com fisco
A minha tensão baixou para menos de 12

As afirmações pareciam enigmáticas e suscitaram comentários ora irónicos ora suspicazes. Já lá iremos. Na prática porém, eram tão lineares quanto isso, De manhã, conseguira resolver um problema fiscal que irrompera sem aviso na minha conta pessoal. Ao fim a tarde, no decurso da consulta de rotina ao cardiologista, a tensão acusou 11,5 - 6.
Sucede que este número, um pouco abaixo do que normalmente me assiste, era bem diferente do apurado no dia anterior e daí a anotação de tal ocorrência na minha confissão facebookiana.
Nesta altura da explicação, convirá recordar que é meu hábito, uma vez por ano, proceder a exames médicos de certa extensão, e tendo decorrido um ano particularmente exigente, achei que no mês de Janeiro deveria retomar essa prática.
Acontece, além disso, que, de 7 para 8, fui dando conta de um certo mal estar febril que anuncia as gripes desta altura do ano. De modo que decidi incluir logo nesse dia 8, o diagnostico de um clinico geral sobre o estado do meu aparelho respiratório. Ora acontece que nesse exame, efectuado, pelas 20 horas do dia 8, eu apresentava uma tensão arterial de 15-8. Um susto (para mim, não para o facultativo).
Acrescento agora - porque esta informação é da maior relevância para a compreensão dos acontecimento subsequentes - que nessa noite do dia 8 eu participava - como participei - numa iniciativa  mil vezes prometida e mil vezes adiada que dava pelo provocatório título de "E Depois da Festa, Pá". O debate teve lugar na sede da Associação dos Viajantes e Técnicos de Vendas. Cheguei tarde ao jantar que reuniu os membros da mesa, o promotor da iniciativa, o Prof. Fernando Capela Miguel, o Prof. da Universidade do Minho Esser Jorge, José Dias, antigo assessor do Presidente Jorge Sampaio e o jornalista Rogério Gomes (moderador). Febril, enfrentei a noite com dois Ben-Hurons 1000 que me haviam sido receitados ma consulta anterior.

Eis agora os comentários que este meu simples post provocou:
Dalila Garcia: E as voltas não te provocaram tonturas? Isso do fisco..
João B. Serra: Estou a aprender a lidar com o fisco! Ou o fisco comigo!?
Paulo Ribeiro Simões: Se vêm a descobrir que as voltas do fisco provocam abaixamentos de tensão arterial.....ainda vamos ver os Cardiologistas a reclamar da usurpação de funções.....E o SNS vê reforçado o Arsenal Terapêutico e passa a prescrever como genérico a 100% de comparticipação, voltear com o fisco...
João B. Serra: Caro Paulo, mas só mesmo você podia associar os dois acontecimentos... Eu limitei-me a responder à pergunta do face: "Que se passa João?"
Dalila Garcia: Ahahahahah!!!! Ups! Adorei o comentário do Paulo Ribeiro Simões!

Moral desta história: ninguém levou realmente em conta a riqueza de informação das minhas assertivas observações, desperdiçando assim o face mais uma oportunidade de fazer coincidir o virtual com o real.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O bom economista, segundo Keynes

O bom economista, escreve Keynes, deve possuir uma rara combinação de dotes (…) deve ser matemático, historiador, estadista e filósofo (na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e tocar o abstracto e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um político.

domingo, 6 de janeiro de 2013

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Muda como a exactidão como a firmeza como a justiça

Uma pequenina luz
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.


Jorge de Sena

Na morte de António Dornelas

Antonio Dornelas era um homem grande, em todos os sentidos da palavra. No seu abraço, que agora perdemos, cabia o mundo da generosidade e da confiança. Dizer "gosto de" era nele tão natural como dizer "acho que". Uma boa conversa podia ser, com ele, também uma boa discussão. Para o António a lealdade era tão importante como a coragem e a lucidez. Perscrutava o futuro porque amava a vida. Por vezes podia parecer excessivo sem perder o sentido da mais fina delicadeza. Na luta desigual contra a doença, todos os dias renascia ora pelo ímpeto do sentimento ora pela força das ideias. Partilhar com ele o tempo intenso e vibrante do conselho, da preparação da decisão, da intervenção cívica e política mais nobre, da criação da amizade, foi um privilegio sem medida.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Creio que me conhecerás

Fernando Pessoa: Carta a Ophélia Queiroz


Meu Ibis Chamado Ophélia:
Pasma, ente pequeno e péssimo! aqui te estou escrevendo, contra meu hábito, uso e costume! Parece impossível — mas não há dúvida. A pena corre sobre o papel, tem tinta, e por isso produz letras. Essas letras formam palavras... mas (diga-se a verdade) essas palavras não têm um sentido por aí além.
Ibis do Ibis: quero jinhos, quero muitos jinhos. Tenho fome de jinhos, tenho sede de jinhos, tem sono de jinhos. Só jinhos é que não tenho.
Amanhã, à 1 hora, passo pela tua casa, como está combinado. Creio que me conhecerás; mas é possível que eu passe disfarçado de vendedor de cautelas, ou de mão de vaca, ou de carroça por concertar. Não sei ainda. Se tiver juízo, irei por meu pé. Se não tiver juízo, irei por meu juízo.
Sabes que estou quase pensando em que terei, afinal, tempo de te ir esperar? Se verificar que sim, levo eu mesmo esta carta, e entrego à Ibis do Ibis da Ibis do Ibis.
O mais natural, porém, é que (o contrário do que está acima).
Nesse caso esta carta irá ter a casa da tua irmã. Mandá-la-ei por alguém, pois é tarde de mais para a deitar no correio.
Tu, hoje e amanhã, se tiveres ocasião e te quiseres lembrar de um certo Ibis que gosta um tanto ou quanto de ti, faz o possível por te lembrar. Sim, Nininha do Nininho do Bebé do Ibis da Vespa do
Fernando
Jinhos x um milhão

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994). p - II.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013