domingo, 13 de janeiro de 2013

Face to face (5)


Face to face


Ao terceiro dia da quarentena, abriu-se uma janela. Controladamente, como não podia deixar de ser, mas ainda assim arriscada. Eu conto.
Cumpri um intenso programa nos dias anteriores. Dei nota aqui das visitas de Juliette Binoche (em viagem de balão vermelho), Elisabeth Taylor (encantando Paris do pós-Guerera) e Henri Fonda (incumbido por Ford de encarnar o jovem Lincoln). Não referi, a visita absorvente de Visconti, que me mostrou com Mastroianni e Maria Schell as Noite Brancas nos canais de Livorno. Esta história dostoievskiana perturbou o meu optimismo mal informado em coisas de amor. Decidi por isso que Luchino teria de se explicar melhor. O que me trouxe em seguida foi simplemente arrasador: Sentimento. Desta vez em Veneza e região, no período das ascensão de Garibaldi, o exemplo que me trouxe sobre a prevalência trágica das inclinações amorosas sobre a razão politica, deixou-me perplexo e duvidoso. Pois bem, ontem ao princípio da noite, convoquei o mestre da minha geração, Truffaut, para uma conferencia sobre o amor e as mulheres. Trazia com ele seis DVD’s, mas de facto só vimos o primeiro, Jules e Jim. O resultado foi devastador. Jeanne Moreau, a minha sempre amada Jeanne Moreau, que ainda há pouco tricotava, no Gebo e a Sombra, o embevecido Luís Miguel Cintra, veio dizer e fazer coisas terríveis acerca do tema, trucidando almas e corações e até corpos, como se viu naquela abominável mas absolutamente previsível cena do carro que atira para o rio. Afinal o amor não muda os seres, não muda o mundo, não constrói? 
Os meus amigos poetas diriam que foi sob o signo da inquietude que recebi a manha. De uma forma mais elementar, direi que acordei sufocado: de tanto tempo encerrado em casa, de tantas visitas até então sempre adiadas. A chuva desaconselhava que saísse, pois corria o risco de ter de ficar dentro do carro. Mas arrisquei e segui até Esposende.
Que rumo tão surpreendente, exclamarão os leitores incautos que tiverem resistido à prosa anterior. Mas existiam e existem motivos para a escolha de Esposende, um local assinalado a azul no meu roteiro sentimental. Que procurava encontrar aí? Pois em primeiro lugar, algum sol, uma temperatura amena, que me permitisse calcorrear as praias e as calçadas, observar o movimento das correntes e das ondas, sentir o pulsar dos barcos e dos portos, apanhar calhaus e arreliar-me com a areia nos sapatos.
Pois foi o que encontrei, exactamente. Coisas sensíveis e ambientes, memorias e desejos de futuro. Uma janela sobre o presente. Saber que o presente prolonga o passado, mas é distinto e autónomo. E que há decisões que somos nós quem as toma. Que podemos e devemos surpreender e ser surpreendidos. Picasso dizia que, enquanto a inspiração vem e não vem, é melhor estar a trabalhar. Isto vale tanto para a arte, como para o amor.

7 comentários:

Isabel Soares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João B. Serra disse...

Querida e atenta amiga, nem urticária, nem gripe, nem intoxicação alimentar. Como neste blogue detidamente se explica, o diagnostico nao foi nada do género. Mas pouco importa, todos somos um pouco treinadores de bancada e médicos facebook...ou seja, especialistas gerais de tudo sobre os outros. Obrigado pelo seu interesse. Abraço.

Isabel X disse...


Também quem mais se lembraria de apamhar varicela com essa idade?

Mas o mais extraordinário, para mim, é alguém aludir de modo tão espirituoso, com tanto sentido de humor e com referências e citações tão a propósito, estando em causa é o seu próprio estado de doença.

Falo por mim porque, estando muito raramente doente, graças a Deus, fico completamente calimera quando isso me acontece.

Esteve doente mas fez umas crónicas do acontecimento que são literariamente muito boas. Pelo ritmo, pelo entrelaçado da narrrativa, pelo desencadear dos acontecimentos de modo suspensivo.

O que é sinal de grande saúde...

- Isabel X -

João B. Serra disse...

Obrigado Isabel X, pelo seu comentário atento e tolerante. Entendo-o como um contributo generoso para a minha recuperação. Justifica-se assim que os dislates e sensaborias do texto lhe tenham escapado. Obrigado.

S. J. disse...

FACE A FACE: CRÍTICA INDEPENDENTE

Ao chegarem aos 17/18 aninhos,
alguns seres humanos - é maior a incidência no género masculino - decidem estancar a hemorragia. Ficam-se por uma adolescência risonha,que não franca.
Reconhecê-los? Fácil!

1.Valentões como Ajax, julgam-se imunes aos grandes males. Expõem-se a provas e resistem a ordálias. Até ao limite de si.
2. Implacáveis como Aquiles, fingem esquecer, apenas para não se incomodarem. Mas cumprem sempre, se não o devido, ao menos o prometido.
3.Inseguros como Agamémnon, só sabem que não querem o que queriam. Rejeitam certezas porque gostam de embalar dúvidas.
4.Astutos como Ulisses, calam na sua eloquência tudo o que seja essencial, a fim de não comprometerem os fundos do seu mar.
5.Como o rei de Ítaca, preferem as loiras, mesmo que postiças.
5.Convictos de si e da beleza que os assiste, como Pátroclo apreciam as armas espelhadas. Sobretudo quando estão sós.
6.Ainda acreditam no Pai Natal, que já situam num gulag da Sibéria,mas também em almas gémeas com quem virão a topar. É só verem mais um filme ou virarem mais uma esquina do mundo.

MORAL DA HISTÓRIA: Nem sempre se perde por esperar...

João B. Serra disse...

O pior da critica independente, mesmo a mais apoiada na erudição clássica, é que é dedutiva e não construtiva, escolástica e não analítica, ideológica e não política. Em suma, é a mais dependente de todas. Dependente das ideias feitas (apesar de coloridas), da suposta verdade (que confundem com a verdade da escrita), e sobretudo da arrogância do próprio lugar da critica. Não há pior critico que aquele que não quer ver: a fantasia e o seu diáfano manto, a historia, e a sua surpreendente indeterminação, a liberdade e o seu radical movimento.

s.j. disse...

CONFISSÕES DE UM CRÍTICO DEPENDENTE

Talvez prefira "confidências": menos carga simbólica e literária...
No entanto, da literatura, porque dela sou dependente, trago comigo a bagagem toda da vida vária.

Entre malas e cestas de verga, a preciosa arca da juventude. Há viagens e aventuras, amores, crime e vingança, paz e guerra, a descoberta das vidas e da morte. Mesmo ao de cima, os Aqueus e os Átridas: violentos na paixão, nobres na violência, implacáveis na luta corpo a corpo e incólumes até ao fim, hesitantes decisores, manhosos e insatisfeitos, não são bons nem maus. São os semi-deuses e os heróis. Verdades literárias. Mas também humanas. Ideias para sempre feitas, lugares mais que comuns. Mas lugares homéricos.

Trago comigo, também, as trouxas da infância. Maldades e castigos, culpas e remorsos e confissões. Nils voando sobre a Suécia, miúdos e castores, índios e cowboys, memórias de burros, céus abertos em pleno azul. Meninos exemplares. E cavaleiros andantes. Aniki bobó, salta a pulga na balança, quem vai à guerra dá e leva. Provocava. Levei que me fartei. Mas voltava sempre. Até descobrir a armadilha no jogo. Então, já do fundo do corredor, com lágrimas de raiva na voz, anunciava: "A esta brincadeira não brinco mais!".

Desequilíbrio na incerteza do terreno. Vertigem do rodopio. Epifania do real.